27 novembro 2020

 


 

A  fogueira

 


 

Se tivesses morrido quando estávamos juntos
eu não teria querido nada de ti.

Agora penso em ti como morto, é melhor.

 

Muitas vezes, nos frescos crepúsculos da primavera

quando, com as primeiras folhas,

tudo o que é mortal entra no mundo,

faço uma fogueira para nós, de madeira de pinho e macieira;

repetidamente

as chamas flamejam e diminuem

à medida que a noite vem, na qual

nos vemos tão nitidamente -

 

E nos dias contentamo-nos

como antigamente

na relva alta,

nas portas e sombras verdes do bosque.

 

E tu nunca dizes

deixa-me

porque os mortos não gostam de estar sós.

 

 



Louise Glück

 

 


(tradução imperfeita minha)

22 novembro 2020

 




Paisagem  com  corvos





Van Gogh
atirava pedras aos corvos
para os esmagar contra o céu
dos seus quadros







José Manuel de Vasconcelos





16 novembro 2020

 

 

 

 

 

A verdadeira mão que o poeta estende

não tem dedos:

é um gesto que se perde

no próprio acto de dar-se

 

 

O poeta desaparece

na verdade da sua ausência

dissolve-se no biombo da escrita

 

 

O poema é

a única

a verdadeira mão que o poeta estende

 

 

E quando o poema é bom

não te aperta a mão:

aperta-te a garganta

 

 

 

 

 

Ana Hatherly

 

 



12 novembro 2020

 



agora paralisado do lado esquerdo após dois avc que terminaram a sua carreira, fica-me a

memória-testamento dele, um dos maiores pianistas que alguma vez pude ouvir sobre um palco.

às vezes penso nos que puderam ouvir chopin tocar, sem estarem conscientes desse privilégio.










10 novembro 2020

 


 

 

 

Não sei qual é o barco ou se há barco.

Sei que navegamos um no outro

que nos encontramos para a navegação.

A uma ilha rubra chamamos coração.
Entre a minha e a tua um sulco de água

se abre. Por vezes cicatriz. Ou só espuma.

E se há mar o teu é perfumado

sem rosa-dos-ventos, portulanos, astrolábios.

Puro mar salgado. Nele um marinheiro

te navega. Serei eu, um dia naufragado.

 

 

 



Carlos Poças Falcão

 

 




08 novembro 2020

 



pulvérisateur - système muratori

(breveté par vilmorin-andrieux et cie., paris)




04 novembro 2020

 


 

lost  and  found  in  translation

 

 


o tradutor perdeu um blusão de camurça
e foi procurá-lo aos perdidos e achados,

um edifício obscuro numa rua esquecida.

no balcão envidraçado podia ler-se: "fale

aqui, diante do hygiaphone". bons tempos,

pensou, em que os diálogos eram audíveis

mas se evitavam a todo o custo os nefastos

perdigotos. e obediente inclinou-se para a

frente, explicou que a peça de roupa agora

em falta era de uma camurça de tonalidade

bege, fazendo até pandã com os sapatos que

trazia calçados. o funcionário do outro lado

da barreira de vidro debruçou-se um pouco

para observar o calçado. quer portanto dizer

o senhor que o blusão é beige e faz pendant.

como sempre acontece quando a linguagem 

oral corporiza conversas bem higienizadas, a

homofonia não foi detectada pelo tradutor.





01 novembro 2020

 



No  atingir  a  idade  de  duzentos  anos

 

 


 

Quando acordei na manhã
do meu ducentésimo aniversário,

esperava ser consultado

por suplicantes,

tal como a Sibila em Cumae.

Poderia ter-lhes dito alguma coisa.

 

Ao invés, foi o habitual:

toranja seca ao pequeno-almoço,

Mozart toda a manhã, interrompido

pelas asas das abelhas,

e fazer amor com uma mulher

de cento e oitenta e um anos de idade.

 

Na minha festa de aniversário

apaguei duzentas velas

uma de cada vez, fazendo

uma sesta a cada vinte e cinco.

Depois, fui para a cama, às cinco e meia,

no dia do meu ducentésimo aniversário,

 

e adormeci e sonhei

com uma casa não maior que a de uma pulga

com duzentos quartos dentro dela,

e em cada um dos quartos uma cama,

e em cada uma das duzentas camas

eu a dormir.

  

 

 



Donald Hall




(tradução minha)