29 novembro 2020
27 novembro 2020
A fogueira
Se tivesses morrido quando estávamos juntos
eu não teria querido nada de ti.
Agora penso em ti como morto, é melhor.
Muitas vezes, nos frescos crepúsculos da primavera
quando, com as primeiras folhas,
tudo o que é mortal entra no mundo,
faço uma fogueira para nós, de madeira de pinho e macieira;
repetidamente
as chamas flamejam e diminuem
à medida que a noite vem, na qual
nos vemos tão nitidamente -
E nos dias contentamo-nos
como antigamente
na relva alta,
nas portas e sombras verdes do bosque.
E tu nunca dizes
deixa-me
porque os mortos não gostam de estar sós.
Louise Glück
(tradução imperfeita minha)
22 novembro 2020
16 novembro 2020
A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se
O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita
O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende
E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta
Ana Hatherly
12 novembro 2020
10 novembro 2020
Não sei qual é o barco ou se há barco.
Sei que navegamos um no outro
que nos encontramos para a navegação.
A uma ilha rubra chamamos coração.
Entre a minha e a tua um sulco de água
se abre. Por vezes cicatriz. Ou só espuma.
E se há mar o teu é perfumado
sem rosa-dos-ventos, portulanos, astrolábios.
Puro mar salgado. Nele um marinheiro
te navega. Serei eu, um dia naufragado.
Carlos Poças Falcão
04 novembro 2020
lost and found in translation
o tradutor perdeu um blusão de camurça
e foi procurá-lo aos perdidos e achados,
um edifício obscuro numa rua esquecida.
no balcão envidraçado podia ler-se: "fale
aqui, diante do hygiaphone". bons tempos,
pensou, em que os diálogos eram audíveis
mas se evitavam a todo o custo os nefastos
perdigotos. e obediente inclinou-se para a
frente, explicou que a peça de roupa agora
em falta era de uma camurça de tonalidade
bege, fazendo até pandã com os sapatos que
trazia calçados. o funcionário do outro lado
da barreira de vidro debruçou-se um pouco
para observar o calçado. quer portanto dizer
o senhor que o blusão é beige e faz pendant.
como sempre acontece quando a linguagem
oral corporiza conversas bem higienizadas, a
homofonia não foi detectada pelo tradutor.
01 novembro 2020
No atingir a idade de duzentos anos
Quando acordei na manhã
do meu ducentésimo aniversário,
esperava ser consultado
por suplicantes,
tal como a Sibila em Cumae.
Poderia ter-lhes dito alguma coisa.
Ao invés, foi o habitual:
toranja seca ao pequeno-almoço,
Mozart toda a manhã, interrompido
pelas asas das abelhas,
e fazer amor com uma mulher
de cento e oitenta e um anos de idade.
Na minha festa de aniversário
apaguei duzentas velas
uma de cada vez, fazendo
uma sesta a cada vinte e cinco.
Depois, fui para a cama, às cinco e meia,
no dia do meu ducentésimo aniversário,
e adormeci e sonhei
com uma casa não maior que a de uma pulga
com duzentos quartos dentro dela,
e em cada um dos quartos uma cama,
e em cada uma das duzentas camas
eu a dormir.
Donald Hall
(tradução minha)