30 julho 2021






leituras  de  julho






  


  


  


 


 


 






:: notas ::


jakob von gunten

robert walser

ed. serpent's tail

 

quando em 1905 walser foi para berlim viver com o irmão karl, matriculou-se numa escola de serviço doméstico. antes de tentar dedicar-se exclusivamente à escrita, chegou mesmo a trabalhar como mordomo ("monsieur robert") numa casa de campo. talvez tenha sido essa escola a base de inspiração para o estranho instituto benjamenta, gerido por dois irmãos enigmáticos, onde jakob é aluno interno. apenas com um único professor e um único manual, o grande objectivo é o ensino da subserviência feliz, o triunfo da humildade sobre a ambição pessoal, o aprender a ser ninguém, obedecendo e executando sem interrogações nem desvios. o livro é uma espécie de diário e, escrito em 1908, exactamente entre o törless de musil (1906) e o brigge de rilke (1910), espelha uma corrente literária surgida no início do séc. xx, em que um narrador confessa actos e pensamentos na primeira pessoa, antecipando o que viria a ser conhecido como fluxo de consciência. o prefácio desta edição, assinado por coetzee, é um dos melhores textos sobre walser que já li.

 

 

 

heaven 

mieko kawakami

ed. picador

 

livro para o pódio do ano. um adolescente, por ser amblíope e tímido, é vítima de bullying por parte de um grupo de colegas da escola. em vez de resistir ou denunciar, o rapaz prefere sofrer em silêncio. a única pessoa que o entende é uma colega, também ela vítima silenciosa de um tratamento semelhante. acabam por ser o porto de abrigo um ou outro, oferecendo um consolo inesperado num momento dramático das suas vidas e tornam-se cada vez mais próximos. porém, em última análise, qual é a natureza de uma amizade cujo vínculo reside num terror partilhado? intimista e psicológica, terna e cruel, esta é uma novela-maravilha que merecia um grande filme.

 







24 julho 2021

 



 

Ruínas

 

 

 

 

Ultimamente
ando por esta cidade

como se andasse entre ruínas,

 

não ficou nada em pé

daquilo

que um dia

foi o meu mundo.

 

 

 

 

Karmelo C. Iribarren

 





06 julho 2021

 



 

começar  um  poema  com  uma  frase  célebre

 

 

 

 

gostava de começar um poema com uma frase célebre, como a
que abre jane eyre, não havia possibilidade de dar um passeio

naquele dia, ou talvez a irónica e invertida primeira de orgulho

e preconceito, de ser uma verdade universalmente reconhecida

que um homem solteiro e possuidor de uma fortuna precisa de

uma esposa. é preferível que essa frase seja curta, como durante

muito tempo fui para a cama cedo, que introduz a proustiana

recherche e convém igualmente que seja uma linha imprecisa e

vaga, porque algo como a casa que os maias vieram habitar em

lisboa, no outono de mil oitocentos e setenta e cinco, se revela

demasiado concreto para induzir um frémito poético no leitor.

também não se poderão empregar palavras que a poesia soube

eleger previamente, assinalar armas e barões traria consigo a vil

marca do plágio. expressões felizes mais recomendadas incluem

a interrogação de cortázar, se encontraria a maga, na abertura

de rayuela, o entardecer invulgarmente quente que antecipa o

crime e castigo de raskolnikov, a definição de universo, a que

outros chamam a biblioteca, segundo borges e o suspiro triste

exalado pelo senhor shandy ao recordar os seus progenitores.

e, claro está, desaconselhável e virtualmente inexequível seria

iniciar um tal poema com aquela frase final do ulisses de joyce.