31 maio 2022






leituras  de  maio






 


 


 


 


 


 





:: notas ::

 

em baixo

leonora carrington

ed. flop

 

depois de um período idílico em saint-martin d'ardéche e após a captura de max ernst, leonora carrington deixa a frança ocupada e parte para espanha. a tensão emocional, a guerra, a fuga e distúrbios alimentares precipitam um esgotamento nervoso, que tem lugar em madrid. é posteriormente internada numa clínica em santander e, vítima de delírios e comportamentos bizarros, sujeita a um tratamento com cardiazol, uma droga na altura ainda experimental, que induzia espasmos semelhantes aos dos electrochoques. este relato perturbador, ditado/escrito em poucos dias alguns anos depois dos acontecimentos reais, mistura realidade e fantasia e torna-se um texto que é ao mesmo tempo diário, descrição surrealista e relato esotérico - tudo numa prosa magnética. o paralelismo com "the bell jar" de sylvia plath tornou-se-me inevitável e, mesmo com todas as imprecisões de um texto baseado numa memória (até que ponto afectada pelas drogas?), nunca desaparece aquela sua ironia muito pessoal que já encontrara nos seus contos. é também impossível não pensar que estamos a seguir o guião de um filme, de enredo complexo, em que nunca se sabe quem são afinal os loucos.

 

 

the expedition

bea uusma

ed. head of zeus

 

há algo de mágico naquilo que foram as aventuras da exploração polar na transição entre os sécs. xix e xx, um tema para mim sempre fascinante. este é um livro raro - parte biografia, parte investigação, parte diário pessoal - escrito por alguém improvável: cem anos depois, uma médica sueca toma conhecimento da expedição andrée, em que 3 homens iriam sobrevoar o pólo norte transportados num balão de hidrogénio. partiram em 1897 e durante 33 anos não se soube deles, até serem encontrados os seus restos mortais numa pequena ilha deserta. a partir dos seus diários recuperados foi possível traçar o seu percurso, desde a avaria no balão até à interminável caminhada pelo gelo. quando morreram tinham comida, abrigo e armas... o que teria sucedido? a autora, na sua demanda pessoal, fornece algumas hipóteses, num relato perturbador e cativante. e passa a haver mais alguém interessado em visitar a solidão branca da white island.

 

 

elizabeth finch

julian barnes

ed. jonathan cape

 

mesmo quando barnes parece testar a paciência dos leitores - falo da segunda parte da novela, dedicada a uma espécie de biografia de juliano, o apóstata - a sua prosa mantém a assinatura pessoal. para mim é um dos grandes escritores vivos e esta narrativa da relação entre uma professora de 'cultura e civilização' e um seu aluno está ao nível do melhor que o autor já nos deu (penso sobretudo em "a sense of an ending"). a professora (elizabeth finch) entretanto falece e deixa os seus livros e apontamentos ao aluno (neil, o narrador); a referida segunda parte é no fundo um ensaio que este julga ter ficado a dever, uma homenagem ao espírito independente e livre de alguém para quem o ensino mais não era do que um incentivo para cada um começar a pensar - e pela sua cabeça.  

 

 

um diário de leituras

alberto manguel

ed. tinta da china

 

li o original (a reading diary) há uns bons anos, uma ideia curiosa e que funciona bem: durante um ano ler um livro por mês, e anotar tudo o que a sua leitura suscitou. esta edição nacional - em português são e escorreito, note-se - tem o atractivo de lhe ser incluído vinte anos depois um subsídio, literalmente um "décimo terceiro mês", dedicado a um livro da nossa literatura: o "viagens na minha terra". manguel e garrett, quem diria?

 

 

four lost cities

annalee newitz

ed. w. w. norton

 

como se perde uma cidade? este livro tenta responder analisando quatro delas, há muito desaparecidas: pompeia, çatalhöyük, angkor e cahokia. quanto à primeira sabe-se porquê: o vesúvio sepultou-a sob alguns metros de cinzas incandescentes no ano 79. mas as outras, aparentemente, eram aglomerações urbanas estáveis e prósperas e, assim sendo, por que razão as populações as teriam abandonado? pelas escavações, análises e inúmeros estudos realizados sabe-se que esse abandono foi gradual e prolongado, como se a vivência em grupo tivesse perdido atractivos e os habitantes optado por uma vida mais próxima da natureza, regressando ao nomadismo ou a pequenos grupos ou aldeias. mas seria essa a única causa?

 






28 maio 2022

 



obituários

 

 


 

após terem contraído vícios eternos durante

a perpétua juventude, aos vinte e sete anos

desapareceram jim morrison, jimi hendrix,

kurt cobain, janis joplin, brian jones e amy

winehouse, de apelido adequado por sinal,

todos eles membros desse malfadado grupo.

 

 

mas há também o clube dos quarenta e seis,

a idade com que desapareceram alguns dos

escritores mais famosos, como albert camus,

oscar wilde, charles baudelaire, george orwell,

david foster wallace e gérard de nerval. outros

sócios são o senhor lovecraft e aquele coronel

lawrence da arábia. apenas georges perec terá

faltado, morto a quatro dias desse aniversário.

 

 

e lembrando que ditos a pedido do médico

muita gente era auscultada pela última vez,

aos trinta e três desapareceram jesus cristo e

alexandre magno. ora, segundo os registos de

uma conservatória, até eu contraí matrimónio,

tendo aí falecido um rapaz solteiro e promissor.

 

 





16 maio 2022

 




Em  parte  incerta

 

 

 

 

Dizem-me
que a última vez que a minha musa foi vista

ia de armas e bagagens, às arrecuas, como que sugada

por um vento que soprasse às avessas.

 

Desde então tem estado

em parte incerta.

 

Mas pelo menos podia telefonar.

 

 

 



A. M. Pires Cabral







08 maio 2022







uma das minhas canções favoritas assinadas por kurt wagner
e seguramente uma das tais dez que levava para a ilha deserta




 







03 maio 2022

 


 

Soneto  menor  à  chegada  do  verão

 


 

 

Eis como o vento
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,

seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,

seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro –

Eis como o verão
entra no poema.

 

 

 


 

Eugénio de Andrade