24 julho 2024



 

 

 

Teoria  do  caos

 

 


 

Na superfície

da minha pele humana

há restos

de saliva, beijos, carícias, mordidelas,

esperma,

chupões,
cortes, feridas, golpes, chagas,

suor, cicatrizes,
esfoladelas, sangue, crostas, pisaduras, lesões,

arranhões,

bofetadas,

varizes, bolhas e queimaduras.

 

Não preciso de perfurações nem de tatuagens,

 

o meu corpo

é um mapa.

 

 

 



Anna Gual

 

 

 




17 julho 2024

 

 

 

Deus  nos  livre

 

 

 

Deus nos livre da erisipela

e do encosto, dos metais leves,

do engaranho e do farfalho, do vaso

revirado e da retórica, do Terreiro

do Paço e das más Companhias,

do mal da toupa,

do veneno do lacrau.

 

 

 



José Carlos Barros

 

 

 




03 julho 2024

 



 há dias falava-se da proliferação de prémios literários lusos,
de como nos últimos anos se tornaram um utensílio de marketing,
da quantidade evidente de falsos génios da literatura que tentaram gerar,
e eu recordei o curto mas incisivo ensaio de joão pedro george em "o cânone"










30 junho 2024

 
 



leituras  de  junho
























:: notas ::


butter

asako yuzuki

ed. fourth estate

 

este é o relato (bizarro, psicológico, misterioso) da interacção entre uma cozinheira gourmet, presa e suspeita de ser uma serial killer, e uma jornalista que pretende desvendar o caso através de entrevistas directas na prisão. na primeira delas a suspeita confessa: há duas coisas que simplesmente não posso tolerar: feministas e margarina. 


 

a loucura do dia

maurice blanchot

ed. snob

 

este breve e magnético livro conta a história de uma loucura, a que consiste em ler além do que as palavras (d)escrevem, ver além do que é visível. talvez por isso seja uma narrativa circular, sem começo nem fim, numa eterna repetição de acaso e propósito, uma justaposição de memória e esquecimento num texto que jamais se fixa. parece ser algo labiríntico, mas os labirintos estão circunscritos aos seus limites - e esta é uma escrita aberta a todas as possibilidades. blanchot terá dito “há o texto e depois nada”. aqui, após o texto há tudo o que quisermos ler nele.


 

kairos

jenny erpenbeck

ed. granta

 

ao contrário de kronos, deus do tempo mensurável, o divino kairos representa o momento oportuno, o tempo como qualidade - e é essa a dimensão desta novela, narrada num estilo peculiar e imaginativo, que venceu recentemente o booker international deste ano. numa alemanha oriental às portas da queda do muro, um homem casado e de meia idade inicia uma relação secreta com uma jovem estudante, que atinge uma dimensão estranha e impensada, enquanto toda a mudança social e política seguinte vai questionar crenças, lealdades e atitudes. e o final, num país em que metade da população espiava e reportava a actividade da outra, nem é assim tão surpreendente.

 


marcus aurelius : the stoic emperor

donald robertson

ed. yale university press

 

excelente e bem escrita biografia de marco aurélio, um romano helenista que talvez tivesse preferido não ser imperador. parece o relato de uma vida, mas contém muitos detalhes históricos e um foco na faceta filosófica, inspirada pela sua educação nos valores do estoicismo, presenta nas suas “meditações”.

 


suicídio

édouard levé

ed. cutelo

 

foi o último livro de levé. evoca-se o suicídio (fictício?) de um amigo de infância, numa narrativa na segunda pessoa. porém, o manuscrito original foi entregue ao seu editor dez dias antes do autor terminar a vida, aos 42 anos. (auto)biografia de um suicídio?

 


edie : american girl

jean stein

ed. vintage

 

o trágico percurso de edie sedgwick, uma rapariga bela, nascida numa família tradicional (e tão rica quanto disfuncional), que se tornou famosa como modelo, musa inspiradora de bob dylan e de andy warhol. a sua biografia acompanha e explica a da américa nos anos sessenta. a biografia tem a particularidade de ser construída como uma montagem de depoimentos e testemunhos alheios, o que neste caso funciona bem.

 


camões - vida e obra

carlos maria bobone

ed. d. quixote

 

uma boa surpresa. partindo dos textos dos biógrafos camonianos “clássicos”, é feita uma revisão e um exame comparativo às suas premissas e argumentos, pelo que esta nova biografia tem logo esse enorme valor - o de resumir e confrontar todas as teorias sobre a vida e obra de luís vaz e as inúmeras interpretações dos seus versos (sabendo-se o quão pouco se sabe verdadeiramente) e dar ao leitor a possibilidade de pensar em tudo isso. o autor propõe as suas opiniões, claro está, mas a abordagem parece-me válida. depois, está escrita em português são e escorreito e, no meu caso, tive ainda satisfação suplementar de ver citado o trabalho do meu tio josé guilherme e a sua procura das raízes flavienses da família de camões.

 

 





10 junho 2024


 


 

Ficções

 

 


 

Podes sempre ler Pessoa sem nunca tentares ser Pessoa

Citá-lo até à idiotia que nada te acrescenta
Cada um de nós tem os seus teatros internos

Alter egos monstruosos que tricotamos numa manta

Ponto por ponto

Cada escritor é apenas leitor de si mesmo

Como Dom Quixote foi leitor de Cervantes

E Hamlet espectador de Shakespeare

Disse Borges 

Em Outras Inquirições

Um escritor pode ser apenas a ficção de um leitor

O leitor a ficção de um escritor

O resto é literatura

Ou poesia se quisermos

Pensei nisto enquanto comia um sonho com açúcar e canela

À mesa da pastelaria.

 

 

 


Ana Paula Jardim

 





31 maio 2024

 

 


leituras  de  maio





















:: notas ::


a shining

jon fosse

ed. fitzcarraldo

 

um homem, que conduz sem destino, entra numa estrada florestal e vê seu o carro ficar preso. entretanto anoitece, começa a nevar e o homem põe-se a caminho, na tentativa de encontrar alguém, até que sente uma presença brilhante e luminosa... será provavelmente a mais beckettiana das novelas curtas de fosse - e um belo texto sobre a morte e a memória.

 

 

in the shadow of vesuvius

daisy dunn

ed. harper collins

 

começa com o fim trágico de plínio, o velho, morto enquanto tentava socorrer amigos encurralados pela erupção do vesúvio. depois seguimos o percurso do seu sobrinho, plínio, o jovem. muito mais do que uma biografia, por aqui se desenrola a história do império romano no final do primeiro século e um retrato vivo dos seus usos e costumes. muito interessante e bem (d)escrito.

 

 

the radetzky march

joseph roth

ed. granta

 

andei desde a juventude a pensar em ler este livro, mas fui sempre protelando... ou seja, cheguei tarde a esta obra-prima - é a verdade nua e crua. no ocaso do império austro-húngaro, a história de três gerações da família trotta funciona como um retrato desse mundo condenado mas esplendoroso. há sempre algo especial num texto em que tudo ocorre envolto num fulgor decadente (lembrei-me dos buddenbrook, do homem sem qualidades, do à la recherche...). e sim, este livro pode estar junto a esses numa estante.

 

 

deep in a dream : chet baker biography

james gavin

ed. vintage

 

poderia ser também a crónica de uma morte anunciada, mas é no fundo a ascensão e queda de um rapaz de oklahoma, desde os sóbrios anos cinquenta, em que a sua abordagem ao trompete lhe valeu o título de “príncipe do cool”, até à sua violenta e misteriosa morte em amsterdão no final dos anos oitenta. pelo meio ficam os mistérios, as performances, os discos, as mulheres e, claro os seus verdadeiros e únicos dois amores: o jazz e a droga.

 

 

contos, parábolas, fragmentos

franz kafk

ed. relógio d’água

 

contos: já os tinha lido quase todos. parábolas & fragmentos: publicados muito postumamente, uma surpresa.

 

  





30 abril 2024

 




leituras  de  abril





















:: notas ::


earthly delights : a history of the renaissance

jonathan jones

ed. thames & hudson

 

este é, para mim, o melhor livro alguma vez escrito sobre a arte do renascimento. com uma visão muito pessoal e argumentação fundamentada, desde van eyck até caravaggio (revisitando o percurso dos incontornáveis bosch, leonardo, bruegel, dürer, michelangelo, etc) e graças ao suporte das magníficas reproduções a cores, a renascença passa pelos nossos olhos como um filme inesquecível. e é mais um thames & hudson imprescindível.

 

 

stories of books and libraries

vv. aa.

ed. everyman’s

 

num só volume, contos e textos de borges, calvino, waugh, cortázar, bradbury, colette, benjamin, moore, entre muitos outros - e todos dedicados a livros, bibliotecas e leituras. como resistir?

 

 

palmeiras e presidentes

o. henry

ed. e-primatur

                                                                                                                                                  

pequenas grandes histórias, independentes mas interligadas, compõem este retrato de uma “república das bananas” (palavra aqui cunhada), feita de gringos e paisanos, prisioneiros de ilusões e mentiras.

 

 

the waste land : a biography of a poem

matthew hollis

ed. faber & faber

 

não se trata apenas um relato crítico da criação intelectual do célebre poemas, mas também um mosaico de apontamentos pessoais, sociais, históricos e culturais sobre esse período, iniciado em 1919, onde acompanhamos mês a mês um atormentado t. s. eliot na génese do poema, a sua mulher vivien (que o apoiou), ezra pound (que o editou), os woolf na fundação da hogarth press, e um desesperado james joyce que, em 1922 e quase em simultâneo com “the waste land”, encontra por fim em sylvia beach (da shakespeare & co.) quem publique o seu “ulysses”. mais uma biografia-maravilha.


 

alexandre o’neill : uma biografia literária

maria antónia oliveira

ed. assírio & alvim

 

duas décadas depois, eis a segunda edição desta biografia-maravilha, revista e aumentada, no ano em que o caixadóclos faria cem anos. e confirmaram-se os meus piores temores: estou cada vez mais próximo dele, no seu individualismo alheio a causas colectivas, na ironia como maneira-de-estar-na-vida, no irremediável desencanto com com este sítio-remorso de todos nós. ai o’neill, ainda bem que partiste cedo, caso contrário serias forçado a testemunhar que as célebres três sílabas vieram mesmo para ficar, e que o plástico (barato e talvez reciclado) infelizmente não é biodegradável.

 

 

 




10 abril 2024

 




pega num clássico trio de guitarra e junta seis sopros:
e aí tens um noneto, tão improvável quanto delicioso











01 abril 2024






leituras  de  março




 


 


 


 





 




:: notas ::

 

alfabeto

inger christensen

ed. não (edições)

 

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377, 610 são os primeiros 14 termos da famosa sequência de fibonacci (onde cada termo é a soma dos dois anteriores). e esse é o número de versos de cada poema das primeiras 14 letras deste alfabeto - onde cabe o mundo todo.

 

 

collected stories (vol. 1)

henry james

ed. everyman’s library

 

por fim presente nas estantes caseiras esta monumental edição (mais de duas mil páginas) dos contos e novelas curtas de james. no primeiro volume (1866-1891) já li “a lanscape painter”, reli “daisy miller: a study” e deleitei-me com “the pupil” e sobretudo com “the aspern papers”, que alguém disse ser uma obra-prima - e não se enganou. 

 

 

a maçã de ferro e outros poemas

vasko popa

ed. maus

 

belíssima colectânea do grande poeta jugoslavo, até agora quase desconhecido entre nós.

 

 

diário da prisão

egon schiele

ed. sr. teste

 

egon schiele foi preso na primavera de 1912, alegadamente por manter presa em sua casa uma rapariga fugitiva e menor de idade. até se esclarecer o assunto e ser por fim libertado passou duas dúzias de dias na prisão, aproveitados para pintar algumas aguarelas e escrever um diário de bordo. este pequeno grande livro reproduz o que foi escrito e pintado.

 

 

morte na floresta e outras histórias

sherwood anderson

ed. cutelo

 

segunda recolha de contos deste autor publicada (em boa hora) pela cutelo. quando se lêem estas histórias, percebe-se imediatamente que sem anderson não teria havido faulkner, nem caldwell, nem hemingway - e não é preciso dizer mais nada.

 

 

endless flight : the genius and tragedy of joseph roth

keiron pim

ed. grante

 

num ano dedicado a tentar ler mais biografias, esta é uma verdadeira pérola. a vida e a obra do escritor são justapostas numa narrativa fluida, sem falhas. e o percurso de roth é mostrado como um retrato da condição humana, de tal forma que por vezes parece estarmos perante uma história da europa nos anos entre as duas guerras. magistral.

 

 

taludes instáveis

josé carlos barros

ed. dom quixote

 

ao fim de uma dúzia de livros, eis uma colectânea de poemas escolhidos e alguns inéditos que ilustra o percurso de um dos maiores poetas actuais.