25 junho 2020






Sozinho




Nunca pensei que Michiko voltasse
depois de morta. Mas se o fizesse, sabia
que seria como uma dama num longo vestido branco.
É estranho que tenha voltado
como o dálmata de alguém. Encontro
o homem que a traz pela trela
quase todas as semanas. Ele diz bom dia
e eu inclino-me para a acalmar. Uma vez
disse-me  que ela não se comporta assim com
outras pessoas. Por vezes está presa
no quintal dele quando passo. Se ninguém
está por perto, sento-me na relva. Quando ela
finalmente se acalma, põe a cabeça no meu colo
e olhamo-nos nos olhos enquanto sussurro
nas suas orelhas macias. Não lhe interessa
o mistério. Ela prefere quando
lhe toco na cabeça e lhe conto as coisas
pequeninas dos meus dias e dos nossos amigos.
Isso fá-la feliz como sempre fez.





Jack Gilbert





20 junho 2020

18 junho 2020

10 junho 2020






Deus  rebelde




Se eu fosse Deus, chamaria os anjos uma noite
para libertar o sol redondo na fornalha da escuridão,
zangado ordenaria aos servos do jardim do mundo
que podassem do ramo da noite a folha amarela da lua.

À meia-noite entre as cortinas do meu divino palácio
iria revirar o mundo nos meus dedos furiosos
e com as mãos, cansadas da imobilidade milenar,
enfiaria as montanhas nas bocas abertas dos mares.

Desamarraria os pés de mil estrelas febris,
espalharia o sangue do fogo pelas veias mudas das florestas,
rasgaria as cortinas de fumo para que no rugido do vento
a filha do fogo se pudesse lançar ébria nos braços da floresta.

E sopraria a flauta mágica da noite
até que os rios se erguessem dos leitos como serpentes sedentas
e exaustos por uma vida a deslizar sobre um peito sem alento
se derramassem no escuro pântano do céu nocturno.

Docemente invocaria os ventos para soltar
os barcos de perfume de flores nos rios da noite.
Abriria os túmulos para que inúmeras almas errantes
pudessem uma vez mais procurar a vida no limite dos corpos.

Se eu fosse Deus, chamaria os anjos uma noite
para ferver a água da vida eterna no caldeirão do inferno,
e com uma tocha ardente expulsaria o rebanho virtuoso
que pasta nos prados verdejantes de um céu impuro.

Farta de ser puritana, buscaria a cama de Satanás à meia-noite
e encontraria refúgio na descida à infracção das leis.
Alegremente trocaria a dourada coroa da divindade
pelo abraço sombrio e dorido de um pecado.




Forough Farrokhzad 





(tradução minha)

05 junho 2020






mais uma vez ocupado na interminável tarefa de tentar
de algum modo ordenar os meus velhos discos de jazz,
pude de novo constatar que é o género de música ideal
para demonstrar o segundo princípio da termodinâmica:
a quantidade de entropia tende a aumentar com o tempo,
mesmo quando se ouve um quase esquecido lee morgan...











03 junho 2020






um  soneto  irónico




o que eu gosto mesmo é das manhãs em que tudo
está no preciso local onde deveria estar: a folhagem
a balouçar no ramo, o pau de giz ao lado do quadro,
o silvo da chaleira, a gaivota aos gritos sobre a praia,

a nuvem indecisa, o mecânico a manobrar o torno,
o selo no envelope, a recém-nascida agarrada à vida,
a relva agradecida pela chuva, o relógio sem pilha há
pelo menos um mês, o autocarro a chegar à paragem,

o livro abandonado no sofá, o carpinteiro a escolher 
o serrote, a borboleta ali pousada, a primeira nota da
ária das variações goldberg, a respiração condensada

na vidraça, alguém na cozinha a preparar uma sopa 
de legumes, a vontade de compor um soneto irónico
e um poeta desesperado perante a página em branco.