03 junho 2020






um  soneto  irónico




o que eu gosto mesmo é das manhãs em que tudo
está no preciso local onde deveria estar: a folhagem
a balouçar no ramo, o pau de giz ao lado do quadro,
o silvo da chaleira, a gaivota aos gritos sobre a praia,

a nuvem indecisa, o mecânico a manobrar o torno,
o selo no envelope, a recém-nascida agarrada à vida,
a relva agradecida pela chuva, o relógio sem pilha há
pelo menos um mês, o autocarro a chegar à paragem,

o livro abandonado no sofá, o carpinteiro a escolher 
o serrote, a borboleta ali pousada, a primeira nota da
ária das variações goldberg, a respiração condensada

na vidraça, alguém na cozinha a preparar uma sopa 
de legumes, a vontade de compor um soneto irónico
e um poeta desesperado perante a página em branco.






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