30 setembro 2019





Copos  de  sede




Se duvidas da tua sede, se não te atreves
a perguntar-lhe ou a dar-lhe um nome,
se só sabes que procuras uma água
que a sacie e não encontras senão poços,
e neles ecos que te chamam, bebe.

Se a sede ao beber desaparece
é porque era só sede. Continua a procurar.

Mas se cresce em ti quando a sacias,
se queres não deixar de ter sede
e sim continuar a beber dia e noite
copos de sede, não duvides:
podes chamar-lhe amor, continuar sofrendo,
e saber que não existe quem te guie.





Juan Vicente Piqueras






23 setembro 2019




[e.f.e.m.é.r.i.d.e]


festeja hoje setenta translações solares o
senhor bruce frederick joseph springsteen













ao  poeta  que  me  envia  árias  avulsas



andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto, serão a maior carta de amor no
teu correio, ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos agarra-te ao boletim de voto e às
revisões constitucionais mas só se te deixarem sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.





Francisca Camelo





18 setembro 2019

16 setembro 2019





in memoriam :: richard theodore otcasek


uma das coisas que tinha piada nos cars, no meio da profusão de bandas do pós-punk, era
aquela capacidade de colar tudo o que eram riffs, coros & outros clichés do rock'n'roll mais
puro e conseguir, ainda assim, ser cool e original. see you ric, watch out the speed limit up there.










14 setembro 2019





La celebrante



Primitiva participas del rito de la palabra
como si fuera un juego
ceremonia de bacantes ebrias
Balbuceas los nombres de los dioses más secretos
con penetrante voz de hereje,
no de celebrante
y cuando cae la noche de los significados
bailas una danza macabra junto a los ídolos caídos.




Cristina Peri Rossi





11 setembro 2019





esta é para mim a melhor cover da icónica canção de bowie.
robert fripp uma vez mais com "aquela" guitarra (já estivera
na gravação original) e os king crimson heróis por um dia.










07 setembro 2019





Com unhas e dentes




Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces. 




Luís Filipe Parrado





02 setembro 2019






as  palavras dos  outros




dizia o o'neill que há palavras que nos beijam como se tivessem boca
acredito nelas, na sua sombra e na sua luz secreta, confessou o juarroz
a mademoiselle houart admitia que as palavras fazem muitos estragos
são anjos de argila, antiquíssimos arqueiros que disparam as flechas de 
erva sobre estrelas vivas, escreveu o ramos rosa, que desconfiava delas
amando muito muito ficamos sem palavras, reconhecia a ana hatherly
eu, mais prosaico, só queria que as palavras dos outros fossem minhas