31 julho 2014







Quanto mais urgente é a escrita
mais humilde o suporte.

Tudo o que realmente importa
foi escrito
em bilhetes de autocarro,
guardanapos quase translúcidos,
versos de sobrescritos,
pacotes de pastilha elástica.

E ninguém o compreende
porque quanto mais urgente
a escrita
mais ilegível a letra.









Ana Tecedeiro















sem espaço para ti
ana tecedeiro





29 julho 2014





fábula  do  fundo  dos  teus  olhos





sabes, houve um tempo em que os teus olhos eram todo o meu mar
olhava para o fundo dos teus olhos e nunca via o que não podia ser
o que busco nestas águas e sei não estar escrito em cartas de marear
o brilho do sol sobre o salpico de espuma no vento que enfuna a vela
olhava para o fundo dos teus olhos e apenas via o que não podia ter
um mastro erguido contra a solidão na breve leveza da âncora içada


mas ontem olhei para os teus olhos e não vi senão o fundo dos meus













[ mouraria ]





28 julho 2014






diz-se que, no final da sua carreira, frequentemente a sua mulher tinha de o ajudar a relembrar as letras dos seus azuis, mesmo dos mais famosos. e por vezes penso nisso, no que poderia ter sido o percurso de mathis james reed se o alcoolismo e a epilepsia não tivessem acelerado o seu desaparecimento precoce. 



Baby plea, first time I plea to you

Baby plea, first time I plea to you

Darlin', now ya got me so upset, baby,
Because I don't know what-a-do

Don't pull no subway, I rather see you pull a train

Don't pull no subway, I rather see you pull a train

You know I love you, love ya baby, girl,
You know it's a cryin' shame

Feel so bad, baby, feel like my heart's skippin' a beat

Feel so bad, baby, feel like my heart skip a beat

Well now, I'm tellin' you pretty baby,
Don't you know what you're doin' to me?











dust heads
jean-michel basquiat





27 julho 2014







[ e alfama e o tejo e tudo ]










Sobre as colinas de Lisboa





Como se fossem várias vidas e outros eus
e a alma se mudasse e a própria pele
sobre as colinas de Lisboa eu digo adeus
e há um Deus que não cabe no papel
cujo sentido não sei e que me soa
como ausência e distância ou o desejo
de saber quem eu sou vendo em Lisboa
outros eus nas colinas sobre o Tejo.

Sobre as colinas de Lisboa eu busco o fio
e quanto mais me busco me disperso
sobre as colinas de Lisboa olhando o rio
e o tempo que passou esperando um verso
a História de rompante e a vida à toa.
Consoante amor se tem (e amor eu tive-o)
consoante amor se tem vem o reverso.
Eis o que escrevo sobre as colinas de Lisboa.

Sobre as colinas de Lisboa a noite cai
e eu olho o Tejo ponto de partida.
Há um barco a chegar outro que sai
assim fui eu. Também assim a vida
e tudo o que se tem é tempo que se escoa
eu próprio sou quem fica e sou quem vai
melancolia ausência despedida
olhando o Tejo das colinas de Lisboa.

Quase todos casaram têm filhos outros não
aos poucos vão morrendo em sua insónia.
Foi ontem foi há um século nunca foi
sobre os rios que vão cantámos por Sião
também nós também nós em Babilónia.
Há guerras que não acabam: a nossa dói.
Sobre as colinas de Lisboa ainda vejo
os barcos que já não vão e são o Tejo.

É a mesma paisagem e outra paisagem
não são os olhos é o tempo que não perdoa.
Consoante o amor se tem assim a imagem
consoante a vida – essa miragem – embora doa
não fazer ao contrário a grande viagem.
Olhando para trás já me não vejo
sou a minha própria ausência nas colinas de Lisboa
ninguém passa duas vezes no mesmo Tejo.

Não é questão de desejo ou não desejo
ninguém é eterno duas vezes num momento
fragmento a fragmento a memória entoa
a passagem do grande rio do esquecimento
não fica senão um gesto um rastro um breve beijo
a memória é uma montagem o resto vai no vento
e ninguém volta nunca ao mesmo Tejo.
Não sei quem sou sobre as colinas de Lisboa.







Manuel Alegre







26 julho 2014






este é um standard intemporal. escrito por johnny green há oitenta e quatro anos, ninguém lhe dá a idade que tem. 
gosto imenso desta interpretação, onde o piano de hank jones está de corpo e alma com o saxofone de joe lovano.








25 julho 2014






rua serpa pinto, n.º 6, 2.º esq.





O corredor, a alcatifa, a mesa
da cozinha, a disposição dos
quartos, a cor dos azulejos,
o branco das paredes, a vista
para o muro das traseiras.
As casas que habitámos
ainda nos habitam.








José Mário Silva











[largo do picadeiro]




24 julho 2014






não é pela deliciosa melodia que cole porter escreveu em 1936, nem pela extraordinária declaração de amor inscrita na letra, e ainda menos pelo arranjo orquestral de nelson riddle (inspirado no bolero de ravel, segundo confessou)... esta é uma canção da minha vida pela inveja que sinto por não a conseguir cantar como ele o faz, inventando pausas onde não existem, encurtando ou prolongando as notas até ao limite do possível, num eterno jogo de sedução entre a voz e o ritmo próprio da canção. há centenas de versões deste standard, mas depois desta todas as outras são irrelevantes. carlos do carmo disse uma vez que sinatra era o maior fadista que alguma vez ouvira. e eu (que nem gosto de fado) sei porquê.



I've got you under my skin

I've got you deep in the heart of me

So deep in my heart, that you're really a part of me

I've got you under my skin.



I tried so not to give in

And I said to myself this affair never will go so well

But why should I try to resist, when baby I know so well

That I've got you under my skin.


I'd sacrifice anything come what might 

For the sake of having you near

In spite of a warning voice that comes in the night

And repeats, repeats in my ear



Don't you know you little fool, you never can win

Use your mentality, wake up to reality,

But each time that I do, just the thought of you 

Makes me stop before I begin,

'Cause I've got you under my skin


I would sacrifice anything come what might

For the sake of having you near

In spite of a warning voice

That comes in the night and repeats, 

How it yells in my ear



Don't you know you little fool, you never can win

Why not use your mentality, step up, wake up to reality

And each time I do, just the thought of you

Makes me stop just before I begin

'Cause I've got you under my skin












frank sinatra (e count basie)
john dominis





23 julho 2014






Avarandado





Quarta nota para
a manhã infinita:

Afinal o grande amor
Não garante nada mais
Do que as 12 graças
Desdobradas pelos
Corredores do mundo
Agora isso é mais
Do que suficiente
E apesar dos bofetões
Do tempo invertido
Apesar das visitas
Breves do pavor
A beleza é tudo
O que permanece








Matilde Campilho












[ m.n.a.a., janelas verdes ]





22 julho 2014






fábula  da  rapariga  que  lê





sempre soubeste o que só agora tens coragem de escrever: procuras a rapariga que lê. não sabes quem é mas sabes como é. não imaginas como vai ser, mas pensas nisso sempre que entras numa livraria. vês aquela rapariga que passa os dedos pelas estantes? é ela, a rapariga que lê. e pode vir a ser a tua rapariga. sim, tenta namorar a rapariga que lê, a que gasta mais dinheiro em livros do que pode. e tem muito mais livros que roupas e sapatos. que a primeira coisa que faz quando abre um livro é cheirá-lo, inalar as palavras. está ali a rapariga que lê, mesmo de pé num transporte público. é fácil namorar uma rapariga que lê. e é bom oferecer-lhe certas palavras como prenda, em poemas de que gostas. namora uma rapariga que lê, ela vai abrir-te também, como se fosses um livro antigo, os teus sonhos vão ser lidos como nunca o foram: tu sabes que nas suas mãos podes ser sempre uma outra história. porque a rapariga que lê sabe que és um capítulo na vida do seu livro. procura-a por aí, ou não. se tiveres sorte e mereceres, vais encontrá-la. e quando encontrares uma rapariga que lê, fica com ela, e nunca, mas nunca nunca a percas. ainda não sabes, mas vais ser tão feliz que te irás perguntar todos os dias por que razão não a encontraste (ou ela não te leu) mais cedo. a rapariga que lê é como uma canção pop, com voz de mel e lábios de açúcar. namora uma rapariga que lê porque com ela os dias passam a ser livros que podes ler a dois. se tens o sonho de um mundo onde as letras são pedras preciosas reunidas em colares de palavras que são, tal qual o amor, a única razão de ser das coisas que houve, há e ainda haverá, então namora uma rapariga que lê. ou, melhor ainda, namora uma rapariga que escreve.








[ há mais de um ano li um texto na net sobre "a rapariga que lê", cujo autor desconheço. reproduzo aqui algumas frases, o resto foi-me aparecendo enquanto as transcrevia e olhava o quadro de hopper ]








hotel room 
edward hopper




21 julho 2014





ainda a pensar na partida de johnny winter: um azul para as meninas más



These women loving each other

You know they ain't thinkin' about no man

They ain't keepin' secrets no more

They playing a wide open hand

I saw a little girl the other day

I asked her for a little thrill

She said I'm so sorry daddy

But I'm puttin' out the same thing you is

I took the woman out ridin'

Bought her all kinds of whiskey and wine

I guess I was too drunk to realize

She say, I'll see you some other time

The woman gets all dressed up to boogie

Goes out smelling sweet like a rose

Comes home 5 o'clock in the mornin'

With that fish scent on her clothes











[ montras de lisboa ]





20 julho 2014






esta canção foi escrita por edu lobo, com letra de chico buarque. e é dos poucos, muito poucos, casos em que me parece uma reinterpretação (pois não se trata de uma simples cover) conseguir suplantar o original. para além do detalhe técnico raro do fraseado do baixo ser ascendente, há ainda essa extraordinária coincidência – e não propositada, como o confessaram os autores – da nota mais aguda coincidir com a palavra céu e a mais grave com a palavra chão. e entre um e outro, ficamos suspensos.



Olha

Será que ela é moça

Será que ela é triste

Será que é o contrário

Será que é pintura

O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu

Se ela acredita que é outro país

E se ela só decora o seu papel

E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha

Será que é de louça

Será que é de éter

Será que é loucura

Será que é cenário

A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu

E se as paredes são feitas de giz

E se ela chora num quarto de hotel

E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão

Para sempre é sempre por um triz

Aí, diz quantos desastres tem na minha mão

Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha

Será que é uma estrela

Será que é mentira

Será que é comédia

Será que é divina

A vida da atriz

Se ela um dia despencar do céu

E se os pagantes exigirem bis

E se o arcanjo passar o chapéu

E se eu pudesse entrar na sua vida













[doca do jardim do tabaco]





19 julho 2014





em certas noites este é um ritual que se repete. aparece, do nada, uma canção dele. a princípio lá vou trauteando 
(e desafinando...), depois acabo pondo o disco a tocar. depois da meia-noite. 


After midnight, we're gonna let it all hang out

After midnight, we're gonna chug-a-lug and shout

We're gonna cause talk and suspicion

Give an exhibition

Find out what it is all about


After midnight, we're gonna let it all hang out


After midnight, gonna shake your tambourine

After midnight, it's gonna be peaches and cream

We're gonna cause talk and suspicion

Give an exhibition

Find out what it is all about


After midnight, we're gonna let it all hang out


We're gonna stimulate some action

Get some satisfaction

Gonna find out what it's all about

After midnight, we're gonna let it all hang out












j. j. cale
anton corbijn





18 julho 2014






O livro





Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou

da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua

atenção ou alguém o arrumou
em segunda fila na estante

Tu não o sabes – como o poderias
saber? – mas esse livro descreve

como e quando vais morrer








Jorge Sousa Braga