29 janeiro 2020






fábula  para  manuel  resende



desculpa, não fui capaz de rasgar aquele poema
depois de o ler. jamais poderia suportar a ideia
de espalhar esses fragmentos pelo vasto mundo,
esperar pelas intempéries ou os homens do lixo
ou sei lá o quê mais que acabasse com ele de vez.


é que também sinto uma dor no peito pelo peso
dos anos, não me abandona a imagem daquele
zarolho a salvar das águas um livro, quando se
alongava a peregrinação cansada sua, a idade
se gastava e crescia o dano. é que também ele,
náufrago na sua poesia, deitou tantas palavras
sobre o mundo a ver se o mundo se arrependia.

é que aqueles versos compareceram em peso,
alvos impolutos ferindo a língua na aresta das
páginas, autênticos acrobatas erectos salvando-
-se a nado do dilúvio gramatical. é que eu gosto
das palavras e do canto, talvez tanto como tu,
e prefiro sentar-me algum tempo junto a mim
ouvindo esse grito irresoluto, lendo o manual
de instruções onde o poeta é subitamente um
animal que tem uma imensa boca, aberta em
cada poro do seu corpo, para matar a fome das
palavras, pois a fome é o pão mais duro de roer.




27 janeiro 2020





Só  isso



Aspirei uma linha de Deus pelo nariz
convencida de que me vinha a fé, mas não veio.
Entraram-me uns quantos ácaros e universos de átomos,
só isso.
Mas não importa
ando descalça há tanto tempo
que andam mil Cristos desejosos de me beijarem os pés.




Cláudia R. Sampaio





24 janeiro 2020





gostei imenso do concerto de miss olsen ontem à noite.
foi intimista, sentido, emotivo, um dos que ficará para sempre.
quando acabou, reparei que não tinham tocado "chance", a minha canção 
preferida do último disco. e depois ela voltou para um encore e terminou com ela. 
sorte, eu sei.















16 janeiro 2020






Linguagem  figurada



Se eu fosse árvore crescia-
-te numa mão cheia
se fosses o mar fazia-
-te castelos brancos de areia.

Se fosses flor arancava-
-te com raiz e tudo
se eu fosse fogo fazia-
-te a casa em cinzas-veludo.

Se eu fosse ninfa sugava-
-te para o fundo do mar
se fosses estrela dava-
-te um tiro para caíres do ar. 




Ulla Hahn





14 janeiro 2020

09 janeiro 2020






bibliosmia



é a primeira coisa que faço quando abro um livro:
aproximá-lo das narinas abertas e inalar aquele seu
perfume, como se dependente de qualquer droga.
cedo percebi que todos os livros possuem um odor
corporal próprio. oliver tearle cunhou uma palavra
para referir esse aroma pessoal e intransmissível, a
belíssima bibliosmia, derivada dos termos em grego
para designar livro e cheiro. não será um fenómeno
científico, há que admiti-lo, mas algo leva as pessoas
a considerarem que o aroma do livro é afinal uma
parte importante da experiência da sua leitura. esse
perfume individual identifica o livro, há quem diga
mesmo que pode identificar um título pelo cheiro
do volume. e por que razão os livros nos chegam às
mãos assim embuídos de aroma característico, pode
perguntar-se. pois bem, para além do cheiro típico
de tintas e colas, que desaparecem após alguns dias,
o verdadeiro odor de um livro resulta a mais longo
prazo da degradação química de compostos dentro
da folha de papel. e também isso é poético: aquilo
que inalamos é a morte lenta do livro, aspiramos o
seu fim, respiramo-lo depois em nós, inconscientes
de que nos sobreviverá por muitos séculos. e reside
nesse decaimento aquela conhecida regra geral que
afirma ser tanto melhor o cheiro quanto mais velho
for um livro. porque todo o papel contém celulose e 
lenhina, polímero de álcoois aromáticos que é ainda
responsável pelo amarelecimento das páginas, embora
os livros velhos contenham também muitas substâncias
químicas específicas, tais como benzaldeído, etilbenzeno,
tolueno ou vanilina, e este nome sugere que a bibliosmia
resultante só poderia ser doce. mas um livro velho e em
segunda mão também pode cheirar ao tabaco que o seu
leitor prévio fumava, à madeira da estante onde alguém
o pousou, e isso torna-o um arquivo único de memórias.
muito se falou na morte, esta bem mais rápida, do livro
tradicional com o advento da electrónica. acontece que
a bibliosmia jamais permitiria que o livro feito de papel
alguma vez pudesse desaparecer, é algo tão impossível
como inalar um desses livros em formato electrónico.
não há futuro para os livros electrónicos porque não
são livros, cheiram a combustível queimado, disse-o
uma vez ray bradbury, talvez evocando uma distopia
que ardeu aos quatrocentos e cinquenta e um graus
fahrenheit. e se o devir do livro é incerto, para mim
ele apenas é pautado por esse lento e suave declínio
dos materiais que o compõem, em decadência quase
imperceptível. por vezes penso que gostaria de sentir
o meu próprio odor impregnado nas folhas que leio,
poder deixar uma herança aromática aos bibliósmicos
vindouros que abram e inalem os livros que certamente
me sobreviverão. até lá, vou aspirando linhas de poesia.





04 janeiro 2020