09 janeiro 2020






bibliosmia



é a primeira coisa que faço quando abro um livro:
aproximá-lo das narinas abertas e inalar aquele seu
perfume, como se dependente de qualquer droga.
cedo percebi que todos os livros possuem um odor
corporal próprio. oliver tearle cunhou uma palavra
para referir esse aroma pessoal e intransmissível, a
belíssima bibliosmia, derivada dos termos em grego
para designar livro e cheiro. não será um fenómeno
científico, há que admiti-lo, mas algo leva as pessoas
a considerarem que o aroma do livro é afinal uma
parte importante da experiência da sua leitura. esse
perfume individual identifica o livro, há quem diga
mesmo que pode identificar um título pelo cheiro
do volume. e por que razão os livros nos chegam às
mãos assim embuídos de aroma característico, pode
perguntar-se. pois bem, para além do cheiro típico
de tintas e colas, que desaparecem após alguns dias,
o verdadeiro odor de um livro resulta a mais longo
prazo da degradação química de compostos dentro
da folha de papel. e também isso é poético: aquilo
que inalamos é a morte lenta do livro, aspiramos o
seu fim, respiramo-lo depois em nós, inconscientes
de que nos sobreviverá por muitos séculos. e reside
nesse decaimento aquela conhecida regra geral que
afirma ser tanto melhor o cheiro quanto mais velho
for um livro. porque todo o papel contém celulose e 
lenhina, polímero de álcoois aromáticos que é ainda
responsável pelo amarelecimento das páginas, embora
os livros velhos contenham também muitas substâncias
químicas específicas, tais como benzaldeído, etilbenzeno,
tolueno ou vanilina, e este nome sugere que a bibliosmia
resultante só poderia ser doce. mas um livro velho e em
segunda mão também pode cheirar ao tabaco que o seu
leitor prévio fumava, à madeira da estante onde alguém
o pousou, e isso torna-o um arquivo único de memórias.
muito se falou na morte, esta bem mais rápida, do livro
tradicional com o advento da electrónica. acontece que
a bibliosmia jamais permitiria que o livro feito de papel
alguma vez pudesse desaparecer, é algo tão impossível
como inalar um desses livros em formato electrónico.
não há futuro para os livros electrónicos porque não
são livros, cheiram a combustível queimado, disse-o
uma vez ray bradbury, talvez evocando uma distopia
que ardeu aos quatrocentos e cinquenta e um graus
fahrenheit. e se o devir do livro é incerto, para mim
ele apenas é pautado por esse lento e suave declínio
dos materiais que o compõem, em decadência quase
imperceptível. por vezes penso que gostaria de sentir
o meu próprio odor impregnado nas folhas que leio,
poder deixar uma herança aromática aos bibliósmicos
vindouros que abram e inalem os livros que certamente
me sobreviverão. até lá, vou aspirando linhas de poesia.





2 comentários:

  1. Gostei muito de ler.
    Lembrei-me do cheiro dos livros feitos por mim e do cheiro dos livros das minhas pessoas.

    Também gostei porque ao mesmo tempo que lia e relia, acompanhou-me este pensamento que em parte 'desconstrói' o princípio: e o cheiro dos livros das bibliotecas públicas, já que leio maioritariamente livros que pertencem a elas... por ler assim, ganho mais ou perco mais?

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  2. em princípio ganha pelo menos o perfume resultante da soma de aromas de todos os que manusearam o livro. e talvez perca parte de si, ao deixar algo nos livros que outros lerão depois, quem sabe? :)

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