06 julho 2021

 



 

começar  um  poema  com  uma  frase  célebre

 

 

 

 

gostava de começar um poema com uma frase célebre, como a
que abre jane eyre, não havia possibilidade de dar um passeio

naquele dia, ou talvez a irónica e invertida primeira de orgulho

e preconceito, de ser uma verdade universalmente reconhecida

que um homem solteiro e possuidor de uma fortuna precisa de

uma esposa. é preferível que essa frase seja curta, como durante

muito tempo fui para a cama cedo, que introduz a proustiana

recherche e convém igualmente que seja uma linha imprecisa e

vaga, porque algo como a casa que os maias vieram habitar em

lisboa, no outono de mil oitocentos e setenta e cinco, se revela

demasiado concreto para induzir um frémito poético no leitor.

também não se poderão empregar palavras que a poesia soube

eleger previamente, assinalar armas e barões traria consigo a vil

marca do plágio. expressões felizes mais recomendadas incluem

a interrogação de cortázar, se encontraria a maga, na abertura

de rayuela, o entardecer invulgarmente quente que antecipa o

crime e castigo de raskolnikov, a definição de universo, a que

outros chamam a biblioteca, segundo borges e o suspiro triste

exalado pelo senhor shandy ao recordar os seus progenitores.

e, claro está, desaconselhável e virtualmente inexequível seria

iniciar um tal poema com aquela frase final do ulisses de joyce.






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