29 julho 2019





Ítaca  sem  gatos



Nenhum gato reconheceu Ulisses no
seu regresso a casa. Nem consta
que algum brincasse com os novelos
que a mulher dobava e desdobava
durante a longa ausência para
iludir os pretendentes. Por isso
me soa estranha a Odisseia e o
regresso a Ítaca sem o festivo içar
da cauda dum gato.




Inês Lourenço





25 julho 2019






Caligrafia




Mesmo agora, que degenera, a caligrafia
é o menos erótico dos desportos
É, como o ténis, capaz
de cindir um pulso, e discreta e melancólica
como a masturbação - na página
desmaia a breve tinta, o obtuso instante
em que a língua molha os lábios e pende
para a pressa ou para a abstracção

E exige ainda assim disciplina histórica,
fluência
entre a mão e o pensamento,
o bom entendimento de cada caracter
Quase já só a usam os velhos merceeiros
no vagar da penumbra, ou por capricho
os noivos em convites de casamento

Não, nem sequer é um desporto
Ninguém se adestra
numa prática de solidão





Andreia C. Faria





21 julho 2019






Não  inventes




Não venhas cá com merdas. Não inventes. 
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas. 
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas. 

Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece; 
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece. 

E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar. 

Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor. 





José Carlos Barros






17 julho 2019






padecer  de  um  distúrbio




a música de bach, os jogos de cores de vermeer,
a mudez das pedras da calçada, o eco do mar
nos búzios, as fotografias a preto e branco, o
cheiro dos livros, tudo isso me enlouquece.


há uma vertigem, um desvario, quando ouço
miles davis ou inalo um perfume, quando
provo um vinho velho, ou toco nas estantes
de bibliotecas e vou admirar silenciosamente
os portulanos em velino que a cartografia nos
legou sem que deles fôssemos merecedores.


e sinto-me um demente indefeso perante certos
poemas, como aquele da cristina rossi em que
ela assegura não conhecer essa arte de navegar
quem nunca navegou no ventre de uma mulher
e naufragou e sobreviveu numa das suas praias, 
porque não é preciso ter escrito algumas cartas 
de marear para saber que é tudo tão verdade.


de ti não gosto, nem penso em ti. por isso não 
me parece sequer justo mencionar-te na mesma
página em que tentei enumerar tudo aquilo que 
mais me convence de padecer de um distúrbio.






13 julho 2019





Flúor



Agradeço-te, mãe, o flúor 
que até aos seis anos tomei em comprimidos
Serve de herança a melhor dentição
Deste-me as falhas, também 
o carácter, mero utensílio
da sorte com que encarar os dias
o silvar nas frinchas
da fala
as dores
e o ranger da criação

Se pela bica começasse
a alma a abrir-se e por tal paisagem
divisasse eu primeiro
a oclusão do céu deixando
intacta na terra
a geração dos vivos
poderia (e tu pela raiz)
salvar-me antes mesmo
de aprender a ler




Andreia C.  Faria





09 julho 2019





Meter em verso as pequenas coisas
mais fáceis de se perderem


Palavras: todas a um tempo
é ao coração, é em vão que falam




Rui Caeiro





07 julho 2019





joão gilberto
(1931-2019...




soube há pouco e fiquei triste. para mim, com o adeus de joão gilberto 
a música brasileira acabou. não me venham com o chico e o caetano e
a betânia e não sei mais quem. não sei explicar, mas nunca gostei do
que se costuma chamar de "música popular brasileira" - e, todavia,
a-d-o-r-o bossa nova. para mim é como o jazz ou os meus queridos
azuis e toda a música que realmente importa. como diz o meu primo
fernando, poucas vezes na história da música um simples intérprete
terá conseguido subverter o cânone e tornar-se ele próprio o cânone. 
ele era apenas aquela dupla, feita de voz e violão, o triunfo inesperado
da simplicidade envolta num lirismo sonhador. e graças a ele todos nós
pudemos ser heróis por um dia, nós os milhões de desafinados que no
banho arriscávamos trautear as suas canções. a bossa nova não passou a
velha, simplesmente deixou de ser, porque ele é irrepetível. e fiquei triste.











03 julho 2019





O  pouco que  sei 




Sei que a pena não vale a pena.

Sei que a alegria não pode ser dita.

Sei que o amor, essa missão selvagem,
delicada, impossível, é a única forma
de estar neste mundo sem errar. 

Sei que a morte não resolve todas as coisas.
Sei que a morte, não, quero dizer a vida,
é um pardal numa árvore despida
ou numa amendoeira em flor,
cantando à luz,
dando graças aos céus por tudo
sem o saber.




Juan Vicente Piqueras