28 outubro 2019

25 outubro 2019






fábula  para  jimi  hendrix 




na manhã seguinte ao dia em que fez dezasseis anos, após contar o
dinheiro recebido em prendas na véspera, deus apanhou o metro
e dirigiu-se ao centro comercial. entrou na loja de discos e por fim
decidiu comprar o álbum que há tanto tempo andava a namorar.
de regresso a casa fechou-se no quarto, removeu a rodela de vinilo
preto de dentro da capa cartonada, onde sobre a imagem daquelas
dezanove mulheres nuas se podia ler electric ladyland, e pousou-a
cuidadosamente sobre o prato do gira-discos. e depois, assim que
começaram a ouvir-se os primeiros riffs de voodoo child, deus fez
um gesto com a mão imitando james marshall hendrix, que num
velho poster pendurado na parede apontava a sua stratocaster na
direcção do público, e voltou a reparar que jimi tinha fechado os
olhos. cerrou os seus também e imaginou-se sobre aquele palco,
a tocar com ele, a ser ele até. então, empunhando uma guitarra 
imaginária e com o pé sobre um pedal wah-wah, deus sorriu de
felicidade. pela primeira vez na sua vida, sentiu que era imortal.






17 outubro 2019





o pessimista que habita em mim diz-me que a caneca está já meio vazia
o optimista que mora em mim refere que o prato ainda está meio cheio
porém o engenheiro que há em mim esclarece que a caneca e o prato
possuem muito provavelmente o dobro do tamanho que deviam ter










15 outubro 2019





a mais recente formação dos king crimson, 
com os três bateristas, é qualquer coisa...










10 outubro 2019






canção  da  infância 




quando a criança era uma criança
caminhava a balouçar os braços,
queria que o regato fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que este charco fosse o mar.

quando a criança era uma criança
não sabia que era uma criança,
tudo tinha alma
e todas as almas eram uma.

quando a criança era uma criança
não tinha opinião sobre nada,
não possuía hábitos,
sentava-se muitas vezes de pernas cruzadas,
saía a correr,
tinha uma madeixa despenteada no cabelo
e não fazia caras quando era fotografada.

quando a criança era uma criança
era o tempo destas perguntas:
por que sou eu, e por que não tu?
por que estou aqui, e por que não ali?
quando começou o tempo, e onde acaba o espaço?
é a vida sob o sol não apenas um sonho?
não é aquilo que vejo e ouço e cheiro
apenas uma ilusão de um mundo perante o mundo?
a maldade existe mesmo e
existem pessoas que são mesmo más?
como pode ser que eu, que sou eu,
não existisse antes de vir a ser eu,
e que um dia eu, que sou eu,
não mais serei quem sou?

quando a criança era uma criança,
engasgava-se com espinafres, ervilhas, pudim de arroz
e couve-flor cozida em vapor,
e agora come isso tudo, e não apenas porque tem de ser.

quando a criança era uma criança,
acordou uma vez numa cama estranha
e agora fá-lo repetidamente.
muitas pessoas pareciam então bonitas,
e agora apenas algumas parecem, por pura sorte.
visualizara uma imagem clara do paraíso
e agora pode no máximo adivinhar,
não conseguia conceber o nada
e hoje estremece ao pensar nisso.

quando a criança era uma criança
brincava com entusiasmo,
e, agora, tem tanta emoção quanto então,
mas apenas quando se trata do seu trabalho.

quando a criança era uma criança
bastava comer uma maçã, ... pão,
e o mesmo é assim agora.

quando a criança era uma criança
as bagas enchiam a sua mão como só as bagas fazem
e ainda é assim agora,
as nozes frescas tornavam a sua língua áspera
e ainda o fazem agora,
tinha, no cume de cada montanha,
o desejo de uma montanha ainda mais alta,
e em cada cidade
o desejo de uma cidade ainda maior,
e ainda é assim.
alcançava cerejas nos ramos mais altos das árvores
com uma alegria que ainda hoje possui,
tinha uma timidez em frente de estranhos
e ainda a sente mesmo agora.
esperava pela primeira neve
e assim a espera ainda agora.

quando a criança era uma criança
atirava um galho qual lança contra uma árvore,
e ela estremece ainda agora.





Peter Handke





(tradução mais-que-imperfeita minha)

08 outubro 2019





O  pássaro  vai  morrer




Estou triste,
estou triste.
Saio para a varanda e acaricio com os dedos
a pele macia da noite.
As luzes do vínculo dissiparam-se.
As luzes do vínculo apagaram-se.
Ninguém me vai apresentar ao Sol,
Ninguém me levará à festa das andorinhas.
Recorda o voo;
o pássaro vai morrer.




Forugh Farrokhzad





(tradução mais-que-imperfeita minha)

03 outubro 2019






anunciado apenas alguns dias antes, no dia dezassete de agosto do ano
de dois mil e treze, sua alteza o príncipe de minneapolis, acompanhado
pelas três princesas das 3rdeyegirl, subiu ao palco do coliseu de lisboa
para um dos concertos da minha vida. alternando entre o rock e o funk,
como sempre fez ao longo da sua carreira, soube captar o público logo
à primeira, numa sucessão de canções que todos cantámos de cor, apesar
de bem sabermos que nunca gostaria mais de nós do que da sua guitarra. 





mas a imagem que para mim ficará para sempre nítida e vívida foi aquele
momento, que alguém captou no clip seguinte, em que após "crimson and
clover" foi repetindo o refrão, alterando-o depois para "over and over" e,
num improviso mágico, nos mostrou o que era para si a música. aquela
imagem final dele a dançar, enquanto no coliseu lotado íamos trauteando 
over and over, é algo irrepetível, eu sei, mas impossível de ser esquecido.









01 outubro 2019