28 abril 2019




[auto-retrato alheio]



há palavras que nos beijam como se tivessem boca, confessava o o'neill.
e há palavras que são sombras de árvores ou um bálsamo da terra,
um pressentimento de espuma, um incêndio do tacto, uma reverência
ao desconhecido, admitia o ramos rosa. eu sou bem mais prosaico.
para mim (perdoa-me, mãe), com três letrinhas apenas se escrevem
algumas das palavras maiores que o mundo tem. e entre essas há 
aquelas que nos obrigam a elevar o olhar, admirando-as com 
reverência no plano superior em que se encontram. corações ao alto.




( fotografia de vitorino coragem )






26 abril 2019






borges  e  as  rosas




sonhou as rosas, rosas de ninguém
de substâncias de sombras evanescentes,
e na roda das pétalas ausentes
ficou o olhar perdido, no vaivém

das brisas no jardim do esquecimento.
tinham carne de noite e de perfume
e tacteou-as devagar, o gume
afiou-se num macio desalento

de lhes ter dado o nome: rosas, rosas
factícias alastrando o seu vermelho
de golfadas de sangue ao vão do espelho
das águas e das luas ardilosas.

e soube que o real era essa imagem
devolvida no espelho, de passagem.






Vasco Graça Moura






20 abril 2019







A casa do pobre é como um tabernáculo
onde o eterno se transforma em alimento,
e quando vem à noite ela entra calmamente
em si mesma, em largos círculos,
e, lenta, em si se recolhe, plena de ecos.

A casa do pobre é como um tabernáculo.

A casa do pobre é como a mão da criança,
que não agarra o que os adultos mandam;
apenas um escaravelho de tenazes atraentes,
um seixo redondo transportado pelo ribeiro,
a areia fluida, os búzios sonantes;
suspensa como uma balança,
ela acusa o mais leve peso
com os seus pratos oscilando longamente.

A casa do pobre é como a mão da criança.

E, como a terra, assim é a casa do pobre:
o fragmento de um cristal futuro,
ora claro, ora escuro, em sua queda,
pobre como a pobreza quente de um estábulo - 
e todavia noites há em que ela é tudo
e todas as estrelas saem dela.





Rainer Maria Rilke






14 abril 2019





há mais de cinco anos falei aqui deste clássico instantâneo
assinado por herbie hancock. gostei de o ver/ouvir recriado
pelo sr. goldblum, cada vez menos actor e mais pianista.










09 abril 2019






o  que quero  fazer  contigo




o pablo neruda diz: quero fazer contigo
o que a primavera faz às cerejeiras. mas
depois chega a elvira sastre e diz: quero
fazer contigo tudo o que a poesia ainda
não escreveu. queridos escritores, peço-
-vos encarecidamente: por favor, vejam
lá se conseguem chegar a um acordo. é
que eu tenho esta mania de ir procurar
inspiração em versos alheios e, perante
tal disparidade lida nos vossos poemas,
assim fico bastante confuso e sem saber
exactamente o que quero fazer contigo.





06 abril 2019






mais uma canção do próximo disco, chegado
daquele além para onde o sr. cale vai de comboio