31 agosto 2022

 




leituras  de  agosto

























:: notas ::


the wine of youth

john fante

ed. ecco

 

reunião de contos, maioritariamente subordinados às memórias de infância de um rapaz oriundo de uma família de emigrantes italianos no estado americano do colorado. cedo percebemos tratar-se de uma narrativa provavelmente autobiográfico e que funciona como uma prequela da saga de arturo bandini. mesmo em episódios enquadrados por uma realidade física e temporal algo rígida, fante é sempre fante.

 

 

in the kingdom of ice

hampton sides

ed. oneworld

 

relato vívido, minucioso e muito bem escrito, da célebre expedição do u.s.s. jeanette, que partindo de são francisco e seguindo a costa oeste americana até ao alaska pretendia atingir o pólo norte por uma via ainda não explorada. os 32 homens sob o comando do capitão delong acabaram presos na banquisa, prosseguindo para oeste com a deriva natural até o navio naufragar, esmagado pela pressão do gelo a mais de mil milhas a norte da sibéria. entre frio, fome, cegueira e loucura, o relato dos sobreviventes é outra daquelas epopeias do ártico na viragem para o séc. xx que sempre me fascinaram.

 

 

o leite dos sonhos

leonora carrington

ed. a bela e o monstro

 

em fuga de uma europa em guerra, leonora carrington foi viver para a cidade do méxico, casou e teve dois filhos. diz-se que pintou as paredes do quarto das crianças com imagens e histórias infantis, que inventava e lhes lia para adormecerem. mais tarde essas paredes foram pintadas de branco mas, graças a um caderninho de rascunhos, esses desenhos de criaturas e histórias oníricas e fantásticas puderam ser recuperados - e perfazem este livrinho maravilhoso para crianças-adultas que não deixaram de sonhar. 

 

 

life ceremony

sayaka murata

ed. granta

 

será talvez a voz mais inovadora - e ao mesmo tempo perturbadora - da moderna ficção japonesa. neste livro (um dos melhores que li este ano) inclui-se uma dúzia de contos, onde a sua prosa concisa e repleta de imaginação nunca perde o brilho em narrativas estranhas, viscerais, algo eróticas e sempre vagamente distópicas. ficamos assim a conhecer as duas alunas que mantêm um ex-executivo como animal de estimação, a noiva que discute com o noivo que não gosta de objectos feitos de restos humanos, a mãe que concebeu por inseminação artificial e se mantém virgem, a cortina da janela de um quarto de rapariga que se vê envolvida num triângulo amoroso com o namorado, o casal assexuado enfrentando os dramas da ma/paternidade e a rapariga da história-título, protagonista involuntária num futuro próximo onde os funerais foram substituídos por "cerimónias de vida", cujos convidados degustam pratos cozinhados com a carne dos recém-defuntos e depois procriam livremente para conservar a espécie.

 

 

the man without qualities

robert musil

ed. picador

 

há tempos recordei uma conversa tida, no último ano do liceu (tempos pré-históricos, anos setenta), com a professora de português. falava-se das obras-pilares da literatura e alguém lhe perguntou quais seriam os livros que, na opinião dela, mais representavam o séc. xx... nunca mais me esqueci dos três enumerados em primeiro lugar: o "ulisses" (joyce), o "à la recherche..." (proust), "o homem sem qualidades" (musil) - e achei que os deveria ler. consegui-o passados alguns anos, nas 'velhas' edições da difel e da livros do brasil. hoje sei que faltava na lista pelo menos o "livro do desassossego" mas há uns meses deparei com aquela citação que diz mais ou menos "como a posse de qualidades pressupõe um certo prazer na sua realidade, podemos ver como um homem que não consegue evocar um sentido de realidade em relação a si mesmo pode de repente, um dia, vir a ver-se como um homem sem qualidades" e quis recordar certas passagens, como a do homem sem qualidades consistir em qualidades sem um homem... esta edição tem as vantagens de uma tradução para inglês bastante louvada e a comodidade de um só volume. 

 

 





23 agosto 2022

 



leitura

 


 

 

a leitura induz o mais pejorativo

solipsismo, de sermos os únicos

teólogos da nossa crença numa

biblioteca viva de que fomos os

criadores, magos infalíveis nessa

fantasia de inevitável extensão e

puro espelho do absurdo de ser.

 

 

com a leitura combato o olvido

de não ser quem talvez pudesse

ou até de ser quem nunca fui, e

todos os livros me confessam o 

mesmo: tudo aquilo que nunca

tiveste te é oferecido para logo

ser perdido, pois ler é esquecer.

 

 

na leitura sou o eu próprio e um

eu outro também, e ambos nos

sabemos leitores recíprocos. não

heróis imortais, apenas vagos e

laboriosos artesãos de um lema:

jamais amnésia e esquecimento

mas sim memória e recordação.

 






19 agosto 2022

 




se há canções impossíveis de estragar, esta é decerto uma delas
mesmo adaptada como instrumental para um bom trio de jazz












09 agosto 2022

 



  

Canina

 

 

 

 

Outra criatura se recorta nos meus gestos.

Outra que a devassa
a natureza, a melancólica prática da carne

acesa em lanhos vivos,

beiços, o mínimo arroubo de dentes

no escuro. Outra criatura pousa.
Come e dorme com regalo,
pela tarde beberica
esparsas brisas no caramanchão.
Odeia uns quantos, ladra muito.
Também ama, se entre o medo
um soldado lhe desarticula a alma,
e sente-lhes o cheiro quando à terra
chegam ossos de indigesto esplendor.

 

 

 



Andreia C. Faria