27 fevereiro 2022

 





leituras  de  fevereiro





 


 


 


 


 





:: notas ::


de genere

raul pereira

ed. snob

 

curiosíssima novela, onde o tempo acaba por ser o personagem principal, aqui feito dimensão desdobrada em duas: há o tempo horizontal, o da história de duas irmãs: joana, vítima de abuso incestuoso, e ângela, que investiga a história da família. essa história, individualizada nos quatro troncos que constituem os dos avós maternos e paternos, é a do tempo vertical. e viajando nele vamos até antepassados árabes e romanos, lusitanos e brasileiros, plebeus e reis, santos e pecadores, numa narrativa com um ritmo peculiar, onde a linguagem e a grafia se acomodam à cronologia e onde as histórias parcelares contribuem para um todo maior que as partes. não sou grande adepto da prosa nacional do presente - coloco-a a milhas da poesia - mas há sempre excepções para confirmar regras, não é? 


 

the art of the haiku

stephen addiss

ed. shambhala

 

é apenas o livro mais completo que alguma vez li sobre a essência e a história da poesia japonesa. desde as suas origens ancestrais (chinesas e outras), primeiras regras formais e o desenvolvimento da waka/tanka (31 sílabas, num arranjo 5-7-5-7-7), até a uma forma mais estável, que durante anos se chamou hokku ou haikai, se popularizou e chegou até nós (17 sílabas, na conhecida trindade 5-7-5) - sobretudo após o aparecimento do chamado quarteto de geniais criadores (bashō, buson, issa, shiki, cujas biografias estão igualmente presentes) - com a designação de haiku. exemplos? mais de 900 poemas são aqui apresentados e traduzidos pelo autor. e também não é esquecida essa forma peculiar de representar pictoricamente os haiku, o haiga (contração de haikuga, imagem do haiku), sendo mostrados e comentados alguns belíssimos exemplares.


 

alejandra pizarnik : biografía de un mito

cristina piña + patricia venti

ed. lumen

 

excelente biografia. no enquadramento familiar e social residem muitas das razões para flora pizarnik ter vindo a ser alejandra. a sua duplicidade permanente, os seus dramas e temores pessoais, o sucesso inicial, a estadia em paris, a interiorização do arquétipo de poeta maldito - tudo poderia ter contribuido para outra narrativa, mas cada etapa parece ter vindo apenas agravar algo que se sabia latente. a partir de '68 os seus dias são a crónica de uma morte anunciada e as autoras, sem nada esconderem do que foram, na vida e na escrita, esses últimos tempos, dão-nos um retrato vívido e perturbador de alguém que descobri tarde e cujos poemas sempre me tocaram. porém, apesar do destapar de muitos véus, sente-se que algo ali permanece secreto. talvez por isso goste de pensar nela como uma espécie de vivian maier da poesia.

 


heaven and hell

jón kalman stefánssonn

ed. maclehose press

 

esta é uma história fabulosa sobre o poder redentor da amizade, dessa amizade incomum que frequentemente surge onde menos se espera. há mais de um século, numa aldeia remota da islândia, um adolescente órfão e o seu amigo baidur ganham a vida na pesca artesanal. esse amigo tem uma paixão pela poesia e vai lendo um livro emprestado, a tradução de 'paradise lost' de milton. após um acidente (em parte provocado pela leitura do poema) em que baidur morre de frio, o rapaz sente-se abandonado, desesperadamente só, e regressa à aldeia com duas ideias na cabeça: devolver o livro e matar-se em seguida. porém, pouco depois, encontra mais pessoas que se sentem desajustadas e... o estilo de kalman tem um brilho inesperado, páginas em que julgamos estar a ler um poema em prosa. há livros assim, geniais, a que se chega tarde.


 





23 fevereiro 2022

 





há toda uma geração que provavelmente desconhece o facto:
nasceu apenas porque um rapaz e uma rapariga dançaram juntos ao som desta canção.
obrigado pelo excesso populacional, senhor brooker, que os anjos façam
uma cover decente com essa orquestra de harpas celestes.











22 fevereiro 2022

 


 

a  morte  da  palavra

 

 


 

tal como certas palavras que nunca ouvimos antes

de alguém as pronunciar de modo certo, também

há poemas a que se chega necessariamente tarde.

por vezes tão tarde que os seus versos se tornaram

folhas secas caídas no chão frio do esquecimento

ou flores mortas no mármore inerte das campas. 

o meu mal é juntar palavras sobre o papel e julgar

que ali, escondidos entre linhas de letras, poderão

estar poemas inauditos. e o pior é que olhar para

as palavras escritas fere, talvez mortalmente, a sua

escrita. a morte da palavra mata sempre a palavra.

 

 

( a morte não tem qualquer importância, como se

sabe, mas importa muito a palavra que a nomeia )

 





15 fevereiro 2022

12 fevereiro 2022

 




volta e meia volto aos clássicos imortais.
este é um deles, consigo sempre ouvi-lo
como se se tratasse da primeira vez.













09 fevereiro 2022

 

 

 

 


A  função  da  poesia

 

 


 

Levantei-me cedo numa terça-feira,

fiz uma cafeteira de café para mim,

depois conduzi até à aldeia,

parando na estação dos correios,

depois no banco onde depositei um cheque

de uma revista, e quando cheguei a casa

li um bocado de um jornal

começando pela secção científica

e tomei outra caneca de café e uma malga de cereais.



Logo depois, já era hora de almoço.

Não tinha fome nenhuma,

mas fiz uma pausa por um instante

para olhar pela janela grande da cozinha,

e foi então que me apercebi de que

a função da poesia é lembrar-me

que existe muito mais na vida

do que aquilo que habitualmente faço

quando não estou a ler ou escrever poesia.

 



 


Billy Collins

 

 




(tradução imperfeita minha)

02 fevereiro 2022

 

 

 

 

As  três  palavras  mais  estranhas

 


 

 

Quando pronuncio a palavra Futuro,

a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,

destruo-o.

 

Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não-ser.

 

 

 



Wislawa Szymborska