23 janeiro 2021

 


 

 

‹‹ A morte de Emine atirou-me de cabeça para um vazio, como se o ramo a que estava agarrado se tivesse partido de repente. Esta perda abalou-me tanto, que nos primeiros tempos me pareceu uma coisa absolutamente sem sentido. Também não consegui perceber quão profundamente aquela morte me afectara. Tudo o que sentia era um peso terrível, negro, dentro de mim. Mas havia ainda outra coisa – uma sensação de libertação. A provação chegara ao fim. Emine não voltaria a morrer; não teria de voltar a passar por mais nenhuma doença. Na minha mente, ela iria permanecer como era. Sem dúvida que me esperavam outros terrores, que haveria outras catástrofes à minha espera. Mas o meu pior medo – o de perder Emine – desaparecera. Nunca mais tornaria a ver o mundo pelo prisma da sua doença ou da sua dor; nunca mais o medo subiria em mim ao ponto de asfixiar todo o meu ser.

O nosso lar fora destruído; deixado sozinho com dois filhos, perdi a vontade de trabalhar e, pior ainda, perdi toda a minha fé. Mas já não tinha medo. O pior que podia ter acontecido já acontecera. Agora era livre. ››


  

Ahmet Hamdi Tanpinar, in O instituto para o acerto dos relógios

 



(é tão estranho constatar estes feitiços do tempo: como um livro fabuloso escrito em meados do século passado tem o poder de,
ao ser lido agora, conseguir retratar com total precisão o que era a minha vida há uma década)

2 comentários:

  1. Tão terrivelmente verdadeiro. Já senti algo semelhante e, ao mesmo tempo, a culpa, o medo de estar a ser insensível. Talvez seja mais comum do que pensamos.
    Boas leituras.

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