29 janeiro 2021

 



leituras  de  janeiro





    


   


   


   







:: notas ::


leonardo da vinci : a biography  

walter isaacson

ed. simon & schuster

 

para além de tudo o que já sabia da sua vida e da sua fabulosa imaginação criativa nos domínios que aguçaram a sua curiosidade global (desenho, anatomia, pintura, construção, etc), sempre naquela ténue fronteira entre as humanidades e as ciências, gostei de saber que também era genial num campo que me é especialmente caro: a procrastinação. finalmente, alguém que me compreende!

 


 

spring garden  

tomoka shibasaki

ed. pushkin press

 

ao fim de três nomeações, foi com esta novela que miss shibasaki ganhou, há meia dúzia de anos, o prestigiado prémio akutagawa. é uma história sobre o desaparecimento da memória que temos das casas e cidades que habitámos e a tentativa de contrariar interiormente o inexorável progresso. taro é um inadaptado social que vive num bloco de apartamentos que vai ser demolido e nishi é uma desenhadora de manga que ainda ali vive. ambos observam uma vivenda que existe atrás de um muro contíguo ao edifício. com base num livro antigo, que refere e mostra fotografias antigas dessa casa, desenvolvem uma curiosidade natural pela sua arquitectura, decoração interior, jardim e habitantes passados e presentes. conseguem por fim visitar aquela casa, quase no momento em que têm de abandonar as suas. os seus diálogos e reflexões são o sumo do texto. a moderna prosa japonesa tem sido o meu tesouro nos últimos tempos.

 


 

o instituto para o acerto dos relógios  

ahmet hamdi tanpinar

ed. maldoror

 

ao fim de três nome por muitos considerado o maior romance turco do séc. xx, esta é uma história feita de muitas outras, urdidas num enredo circular, um relato das desventuras de um fabuloso anti-herói que, juntamente com um grupo de personagens improváveis (um relojoeiro filósofo, um farmacêutico alquimista, um psicanalista palrador, um dignatário do extinto império otomano, etc.) vai fundar um instituto para a regulação nacional de todo o tempo medido. a tarefa é quixotesca: assegurar, através de uma organização que aplica métodos e multas hilariantes, que todos os relógios do país, públicos ou privados, estão ajustados ao tempo ocidental. e assim, por entre memórias da juventude do narrador e inúmeras aventuras paralelas, se vai desenrolando uma sátira brilhante e certeira à chegada inexorável dos valores ocidentais a uma turquia ainda regulada por tradições centenárias. poderia parecer apenas uma novela cómica, mas acaba por ser um daqueles livros que sabemos ser um clássico para degustar e guardar e cuja edição, apesar de algumas "gralhas" incompreensíveis, se saúda e recomenda vivamente.

 

 






23 janeiro 2021

 


 

 

‹‹ A morte de Emine atirou-me de cabeça para um vazio, como se o ramo a que estava agarrado se tivesse partido de repente. Esta perda abalou-me tanto, que nos primeiros tempos me pareceu uma coisa absolutamente sem sentido. Também não consegui perceber quão profundamente aquela morte me afectara. Tudo o que sentia era um peso terrível, negro, dentro de mim. Mas havia ainda outra coisa – uma sensação de libertação. A provação chegara ao fim. Emine não voltaria a morrer; não teria de voltar a passar por mais nenhuma doença. Na minha mente, ela iria permanecer como era. Sem dúvida que me esperavam outros terrores, que haveria outras catástrofes à minha espera. Mas o meu pior medo – o de perder Emine – desaparecera. Nunca mais tornaria a ver o mundo pelo prisma da sua doença ou da sua dor; nunca mais o medo subiria em mim ao ponto de asfixiar todo o meu ser.

O nosso lar fora destruído; deixado sozinho com dois filhos, perdi a vontade de trabalhar e, pior ainda, perdi toda a minha fé. Mas já não tinha medo. O pior que podia ter acontecido já acontecera. Agora era livre. ››


  

Ahmet Hamdi Tanpinar, in O instituto para o acerto dos relógios

 



(é tão estranho constatar estes feitiços do tempo: como um livro fabuloso escrito em meados do século passado tem o poder de,
ao ser lido agora, conseguir retratar com total precisão o que era a minha vida há uma década)

17 janeiro 2021




 

 

Ítaca

 


 

 

O amado não precisa
de viver. O amado

vive na cabeça. O tear

é para os pretendentes, encordoado

como uma harpa com fio de sudário branco.


 

Ele era duas pessoas.

Ele era o corpo e a voz, o fácil

magnetismo de um homem vivo, e depois

o sonho ou imagem que se desenrola

moldado pela mulher manobrando o tear,

ali sentada na sala cheia

de homens sem imaginação.


 

Como lamentas

o mar enganado que tentou

levá-lo para sempre

e apenas levou o primeiro,

o actual esposo, tens de lamentar

estes homens: eles não sabem

para o que estão a olhar;

eles não sabem que quando alguém ama assim

o sudário se torna um vestido de noiva.

 

 

 



Louise Glück






(tradução imperfeita minha)


14 janeiro 2021

08 janeiro 2021

 



 

carta  motivacional




não me seduz o trabalho mecânico, que isenta a criatividade,

aproveito até para informar que tenho um defeito num dedo

e tão-pouco os horários me agradam, porque neles identifico

uma tentativa de restrição à liberdade de escolher momentos

em que me poderia apetecer invocar a ingrata musa da poesia

é-me difícil absorver o pensamento corporativo, que imagino

seja um pilar em que se apoia a moderna cultura empresarial

nem creio igualmente estar talhado para o inevitável contacto 

com os clientes, dado me assustarem as relações interpessoais

 

 

só espero que esta carta motivacional possa esclarecer vossas

excelências quanto à minha total inadequação para tal cargo

 

 





03 janeiro 2021