30 dezembro 2020
29 dezembro 2020
27 dezembro 2020
O outro
Porquê pronunciar nomes de deuses, astros,
espumas de um oceano invisível,
pólenes dos jardins mais remotos?
Se nos dói a vida, se cada dia chega
rasgando as entranhas, se cada noite cai
convulsa, assassinada.
Se nos dói a dor de alguém, de um homem
que não conhecemos, mas que está
sempre presente e é a vítima
e o inimigo e o amor e tudo
o que nos falta para sermos inteiros.
Nunca digas que é tua a escuridão,
não bebas de um trago a alegria.
Olha à tua volta: há outro, há sempre outro.
O que ele respira é o que a ti te asfixia,
o que come é a tua fome.
Morre com a metade mais pura da tua morte.
Rosario Castellanos
21 dezembro 2020
17 dezembro 2020
fábula de natal
o quarto rei mago atrasou-se bastante
e não ficou na história. mas chegou a
tempo de adorar o recém-nascido em
belém. não quis viajar com os outros,
explicou, porque a pegada ecológica
de um camelo não é negligenciável.
mas a mobilidade de uma trotinete
eléctrica no deserto é algo reduzida,
esqueci-me desse pormenor, disse-o
com um sorriso envergonhado. viu
o ouro, o incenso e a mirra, abanou
a cabeça e ofereceu ao menino um
cilindro metálico, feito de platina
iridiada. no futuro irão chamar-lhe
quilograma-padrão, será a unidade
de massa e com ele é possível medir
o peso deste mundo, acrescentou.
que é também a negação da leveza
dos homens, pensou a criança. vou
sofrer tanto por eles, valerá a pena?
14 dezembro 2020
11 dezembro 2020
A mágoa de Circe
No final, dei-me a conhecer
à tua esposa, assim como
um deus faria, na sua própria casa, em
Ítaca, uma voz
sem um corpo: ela fez
uma pausa na sua tecelagem, virando a cabeça
primeiro à direita, depois à esquerda
embora é claro não houvesse maneira
de associar aquele som a qualquer
fonte objectiva: duvido
que ela volte ao seu tear
com aquilo que sabe agora. Quando
a vires de novo, diz-lhe
que é assim que um deus se despede:
se estiver para sempre na sua mente
estarei para sempre na tua vida.
Louise Glück
(tradução imperfeita minha)
02 dezembro 2020
um punhado de tempo
trago nas minhas mãos fechadas um punhado
de tempo, esquecido em relógios sem corda.
são silêncios antigos de momentos mudos e
fios perdidos num tecido rasgado que nunca
mais será remendado. são horas de minutos
diminutos, segundos ainda por coser, vagas
lembranças de uma trama mal urdida. e são
os meninos de suas mães destas recordações,
as malhas que jamais o império poderia tecer
após ter deixado os teares na loja de penhores
onde, entre velharias, jazem mortos e arrefecem.