{ excerto de um episódio :: a queda de ícaro }
(…)
e esse conceito,
posteriormente tão propagado,
do jovem ícaro como vítima
da arrogância humana,
talvez seja
desproporcionado e esteja até errado,
porque a sua morte se
sucedeu a um feito extraordinário,
uma aventura ímpar não
mais repetida pelo homem:
porque para ícaro a fuga,
apesar da consequência trágica,
terá sempre valido a pena,
pois pagaria qualquer preço
por esse sentimento de
vitória sobre os muros do labirinto.
e ícaro tornou-se
realmente imortal, tendo ganho um lugar
eterno na nossa imaginação
por ter sido o único a conseguir
o que toda a humanidade desde
sempre desejara fazer
ao observar fascinada o
voo livre e sem esforço das aves:
poder um dia simplesmente
imitá-las.
porque, como refere o
perspicaz ovídio,
se algum pescador
empunhando a sua cana,
ou um lavrador manobrando o
cabo do arado
ou até um pastor apoiado
no seu cajado
tiver erguido os seus
olhos naquele momento,
e estupefacto visto pai e
filho a voar pelos céus,
terá decerto ficado a
pensar que só poderiam
ser dois deuses a caminho
do eterno olimpo.
inúmeros são os artistas
que a seu modo tentam,
muitos séculos depois, captar
nas cores de uma tela
esse dramático episódio
que a todos continua a fascinar,
como joos de momper e a
sua visão do preciso momento
da queda, em que imaginamos
as gotas da cera derretida
a cair sobre a água, e
carlo saraceni e peter paul rubens,
ambos com a terrível
imagem da desagregação das asas,
enquanto antoon van dyck e
frederick leighton optam
pelo retrato de dédalo a
dar os últimos conselhos a ícaro
antes do fatídico voo.
para herbert james draper o filho
de dédalo mais não é que um
glorioso anjo caído e, para
henri matisse, um vulto
negro de coração ao rubro,
que dança triunfante ao
redor de estrelas cadentes.
mas o melhor retrato é
para mim o de pieter bruegel,
o qual, quando pintou “a
queda de ícaro” que lhe é atribuída,
colocou em primeiro plano
o lavrador, o pastor e o pescador,
mas mostra-os no
desempenho dos seus afazeres quotidianos,
compenetrados e quase indiferentes à
pequena figura secundária
de ícaro que, no canto
inferior direito do quadro, desaparece
no mar, não nos deixando
sequer ver as fantásticas asas,
somente uma mão que cai
inerte como uma pena na água,
numa alegoria ao triunfo
da nudez crua da realidade
sobre a fantasia dos
antigos mitos e a presunção estéril
de transcendência que
habita qualquer vã aspiração humana,
como se alguém numa
tragédia o dissesse melhor do que nós:
coro:
funesta máquina, que
puseste a voar o homem que somos.
a terra e o mar sucumbiram
ao nosso poder: só restava o céu.
os deuses deram como
prenda duas asas à genial ave,
e do brilho da plumagem e
do voo nasce a sua alegria,
embora apenas as aves
sejam companheiras das nuvens.
o imenso espaço azul, os
fortes ventos e as aves coloridas
são todos da mesma raça.
mas nós não: o nosso único
génio é o de criar deuses
que gostaríamos de poder imitar.
(…)
{ excerto do final do livro :: morte de dédalo }
(…)
dédalo:
vejo que chegas com um macio manto azul
nas mãos, para me envolver no teu abraço.
parece-me que será nas margens deste rio
que farás o suave leito onde irei
descansar.
e sinto que esta beleza e esta paz são
ofertas tuas.
coro:
abram a porta. deixem-no entrar
assim que as memórias o abandonarem.
dédalo:
recordo ainda o fio que entreguei
a ariadne,
vejo aquele homem infeliz
com cabeça de touro
e as asas do meu filho a
caírem sobre o mar.
relembro o incessante mar
que em cada manhã
voltava a
sulcar a areia das praias de creta,
mas já não me é possível, adorada
náucrate,
antever a luz do teu rosto sobre
o meu.
coro:
assim que das recordações se
esqueça.
dédalo:
tenho em mim a memória das
tuas mãos, meu filho,
tão pequenas e fechadas nas
minhas quando nasceste.
ainda hoje sei de cor as
tuas mãos, meu filho,
tão trémulas e resignadas quando
não lhes pude valer.
coro:
assim que das recordações se
esqueça.
dédalo:
não queria morrer na beleza
desta tua terra,
e sim poder viver para
sempre no teu peito.
queria apenas pensar na água
em que te banhasses,
no fruto que abrisses e na
flor que colhesses,
na túnica que vestisses e na
canção que cantasses
mas o meu coração, se assim pudesse
pensar, pararia.
coro:
assim que das recordações se
esqueça.
dédalo:
pois neste palco de formas
infinitas que é o mundo,
desempenhei o meu papel sem
dele saber ser actor.
coro:
abram a porta, deixem-no
entrar.
dédalo:
porta que sempre para mim estiveste
aberta,
mesmo quando os olhos do céu
pareciam fechados,
sei que o teu apelo solene
nunca se silencia.
da semente à flor, da flor
ao fruto e de novo
do fruto à semente, por ti passa o caminho.
só quem não sabe o que há no
teu interior
tem medo de te abrir e receia
afinal entrar.
coro:
as coisas aconteceram assim
no mundo:
nem dédalo nem os deuses
podiam saber
que no fim do labirinto
estava outro labirinto,
este invencível, que é o do
tempo que jamais cessa,
pois num lugar já fixado o
hades a todos espera.
o
industrioso fio de ariadne perdeu-se no tempo
e nesse
labirinto até o labirinto se perdeu também,
mas é nosso
dever imaginar que há um labirinto e um fio
mesmo que
jamais, nem em sonhos, encontremos algum.
(a luz
da manhã desponta no horizonte. o corpo de dédalo jaz imóvel na cadeira.
e o seu
espírito, enquanto vai caindo o pano, lentamente sai de cena.)
"
ResponderEliminarcoro:
abram a porta. deixem-no entrar
assim que as memórias o abandonarem.
"
terrivelmente bonito (por exemplo :)
e fiquei a matutar nisto, entre a contemplação esvaziante e a acumulação de impressões :)
__________
p.s. - obrigada, josé luís
;)
Eliminar