31 outubro 2014







Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe







Daniel Faria













[ castelo de são jorge ]





30 outubro 2014






O frigorífico branco




O frigorífico estava vazio
Apesar desse aspecto desolador
foi ao mercado
e com todo o dinheiro que lhe restava
comprou um enorme ramos de junquilhos







Jorge Sousa Braga














modern conveniences
charles demuth






29 outubro 2014








calçelfie #8

[ auto-rerato de uma espécie em vias de extinção ]











hoje recordei um dos grandes momentos do disco de estreia de herbie hancock. ouve-se isto agora, aquele piano, aqueles dois solos (o trompete de hubbard e o sax de gordon) e custa admitir que o homem da melancia já tenha festejado cinquenta e duas primaveras…









28 outubro 2014






fábula  do  soneto  simples






sempre desejei escrever um soneto simples com letras de água:
catorze versos alinhados da forma habitual numa folha branca
em que as palavras mais não fossem que ondas desalinhadas
e as frases pudessem evocar as imagens náuticas que em mim


se repetem todas as noites. deitado ao teu lado não adormeço
sem içar uma âncora, mesmo quando sei que sonhas um mar
por nós nunca dantes navegado. ouço a tua respiração suave
e sei que em ti se aporta a ilhas encantadas, em ti não morre


nunca a promessa do aroma da canela. se te navegasse podia
descobrir que afinal não estou preso a este cais e libertar-me
das amarras de sal nos meus pulsos de marinheiro que naufraga


ao olhar a mansidão do teu corpo de caravela ancorada a nós:
por que razão continuamos encalhados nesta maresia só nossa
se sabemos ambos que a maré apenas sobe quando a noite desce?














[estufa fria]






27 outubro 2014







uma saudade de aeroporto numa guitarra só:
um grande grande azul tocado em português



I wonder why all planes are leavin’ but mine
It would be great some other time, baby’s waitin’ tonight

I wonder how long must I stand here alone
It would be great some other time, baby’s waitin’ at home

Oh my faith is crossed I won’t reach her on time
I wish I had a freight train to get to the end of the line






25 outubro 2014






num dia ensombrado pela notícia do desaparecimento de jack bruce, john roy anderson celebra hoje setenta translações solares. será sempre a inesquecível voz dos yes, embora tenha gravado a solo e em colaboração, sobretudo com vangelis (como aqui recordo, nessa fabulosa homenagem ao cinema que é "the friends of mr. cairo"). muitos parabéns jon.












Loucuras




E tu tão longe
e tão dentro de mim, tão invasivo.
E esta chuva
que ameaça dissolver toda a terra
e tornar tudo mar, o meu pesadelo.
E de repente todas as distâncias
se tornam infinitas,
como se só o louco mais malvado
as pudesse ter concebido.






Amalia Bautista






24 outubro 2014






a canção original foi gravada na motown para smokey robinson embora tivesse sido a cover de marvin gaye a torná-la famosa. mas, para mim, a versão definitiva veio de outra área, com os creedence numa excelente (e prolongada) fusão entre o soul e o rock.















[travessa do jordão]






21 outubro 2014






fábula  da  âncora  no  cais





vieram falar da tua partida, nas velas enfunadas que se viam ao longe,
no rumo sem rumo das cartas de marear que ficaram abertas em mim.

disseram-me: sabias que há uma âncora no cais que costumavas ser
mas que não amarra qualquer veleiro que ali aporte? e eu não sabia.













[oceano atlântico]





20 outubro 2014






d e s c u b r a
a s
s e t e
d i f e r e n ç a s :







o que também tem piada nos azuis são os autores que os escrevem sem o saberem. é (quase) o caso desta canção de tracy chapman que amos wells blakemore jr. percebeu estar nela inscrito um grande azul, tendo gravado uma cover que acaba por ser daquelas que superam a versão original.



a) tracy



b) junior
















gerti schiele
egon schiele





19 outubro 2014





Explicação da gravidade




A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos.







Daniel Faria













worthy constituents
jean-michel basquiat





17 outubro 2014







a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

  





Al Berto













my gems
william harnett






15 outubro 2014






esta é para mim a grande canção do disco de estreia dos roxy music. na verdade é uma espécie de colagem de três temas (o primeiro vagamente country, o segundo marcado pelo saxofone e o refrão repetido da última parte) mas estava ali, desde logo, toda a essência do que viria a ser a música do grupo.



If there is something that I might find
Look around corners
Try to find peace of mind I say
Where would you go if you were me
Try to keep a straight course not easy
Somebody special looking at me
A certain reaction we find
What should it try to be I mean
If there are many
Meaning the same
Be specific just a game

I would do anything for you
I would climb mountains
I would swim all the oceans blue
I would walk a thousand miles
Reveal my secrets
More than enough for me to share
I would put roses round our door
Sit in the garden
Growing potatoes by the score

Shake your hair girl with your ponytail
Takes me right back (when you were young)
Throw your precious gifts into the air
Watch them fall down (when you were young)
Lift up your feet and put them on the ground
You used to walk upon (when you were young)
Lift up your feet and put them on the ground
The hills were higher (when we were young)
Lift up your feet and put them on the ground
The trees were taller (when you were young)
Lift up your feet and put them on the ground
The grass was greener (when you were young)
Lift up your feet and put them on the ground
You used to walk upon (when you were young)






festejou ontem cento e vinte risonhos outonos o senhor cummings. que contes muitos edward estlin. ]








it is at moments after i have dreamed

of the rare entertainment of your eyes,

when (being fool to fancy) i have deemed

with your peculiar mouth my heart made wise;

at moments when the glassy darkness holds



the genuine apparition of your smile

(it was through tears always) and silence moulds

such strangeness as was mine a little while;



moments when my once more illustrious arms

are filled with fascination, when my breast

wears the intolerant brightness of your charms:



one pierced moment whiter than the rest



—turning from the tremendous lie of sleep

i watch the roses of the day grow deep.






e. e. cummings