Sobre as colinas de Lisboa
Como se fossem várias vidas e outros eus
e a alma se mudasse e a própria pele
sobre as colinas de Lisboa eu digo adeus
e há um Deus que não cabe no papel
cujo sentido não sei e que me soa
como ausência e distância ou o desejo
de saber quem eu sou vendo em Lisboa
outros eus nas colinas sobre o Tejo.
Sobre as colinas de Lisboa eu busco o fio
e quanto mais me busco me disperso
sobre as colinas de Lisboa olhando o rio
e o tempo que passou esperando um verso
a História de rompante e a vida à toa.
Consoante amor se tem (e amor eu tive-o)
consoante amor se tem vem o reverso.
Eis o que escrevo sobre as colinas de Lisboa.
Sobre as colinas de Lisboa a noite cai
e eu olho o Tejo ponto de partida.
Há um barco a chegar outro que sai
assim fui eu. Também assim a vida
e tudo o que se tem é tempo que se escoa
eu próprio sou quem fica e sou quem vai
melancolia ausência despedida
olhando o Tejo das colinas de Lisboa.
Quase todos casaram têm filhos outros não
aos poucos vão morrendo em sua insónia.
Foi ontem foi há um século nunca foi
sobre os rios que vão cantámos por Sião
também nós também nós em Babilónia.
Há guerras que não acabam: a nossa dói.
Sobre as colinas de Lisboa ainda vejo
os barcos que já não vão e são o Tejo.
É a mesma paisagem e outra paisagem
não são os olhos é o tempo que não perdoa.
Consoante o amor se tem assim a imagem
consoante a vida – essa miragem – embora doa
não fazer ao contrário a grande viagem.
Olhando para trás já me não vejo
sou a minha própria ausência nas colinas de Lisboa
ninguém passa duas vezes no mesmo Tejo.
Não é questão de desejo ou não desejo
ninguém é eterno duas vezes num momento
fragmento a fragmento a memória entoa
a passagem do grande rio do esquecimento
não fica senão um gesto um rastro um breve beijo
a memória é uma montagem o resto vai no vento
e ninguém volta nunca ao mesmo Tejo.
Não sei quem sou sobre as colinas de Lisboa.
Manuel Alegre