Descrição
da cidade de Lisboa
A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol,
menina a comer
cachorro quente, menina a dançar na rua, rapariga
do dedo
no olho, do dedo na árvore. Rapariga de braços
levantados,
rapariga de pés baixos, rapariga a roer as unhas,
rapariga a ler
jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay,
rapariga no
vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga
aflita, rapa-
riga solta, rapariga abraçada, rapariga precisada.
Rapariga
a fumar charuto, rapariga a ler Forster, rapariga
encostada
na palmeira, rapariga a tocar piano. Rapariga
sentada em
Mercúrio ao lado de um leão, rapariga a ouvir
discurso de
Ghandi, rapariguinha do shopping. Rapariga feita de
átomos
e sombra. Rapariga de um ponto ao outro e medindo
qua-
renta e dois centímetros, rapariga impávida,
rapariga serena.
Rapariga apaixonada por igreja quinhentista,
rapariga na
moto a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga
que ofe-
rece à visão o hábito da escuridão e depois logo se
vê. Rapa-
riga de ossos partidos, rapariga de óculos negros,
rapariga
de camisola em poliéster, rapariga debruçada na
cadeira da
frente no cinema, rapariga a querer ser Antonioni.
Rapa-
riga estável, rapariga de mentira, rapariga a tomar
café em
copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga na
proa da
nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga
de pó na
cara, rapariga abstémia, rapariga evolucionista.
Rapariga de
rosto cortado pela faca de Alfama, rapariga a fugir
de com-
promissos, rapariga a mandar o talhante à merda,
rapariga a
assobiar, rapariga meio louca. Rapariga a deslizar
manteiga
no pão, rapariga a coçar um cotovelo, rapariga de
cabelo
azul. Rapariga a brincar com um isqueiro no bolso,
rapa-
riga a brincar com um revólver nas calças, rapariga
a nadar,
rapariga molhada, rapariga a pedir uma chance só
mais uma
ao santo da cidade. Rapariga a ostentar decote no
inverno,
rapariga a olhar pelo canto do olho esquerdo,
rapariga a ser
homem, rapariga na cama. Rapariga a subir o volume,
rapa-
riga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no chão.
A rapariga
a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia
de seda
amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado
numa
esquina.
Matilde
Campilho
Lisboa é uma rapariga assim, feita de muitas raparigas que às vezes parecem estranhas umas às outras, e outras vezes se aproximam... E lá está a rapariga impávida / a rapariga serena.
ResponderEliminarGostei muito de ler! Não conhecia este poema da Matilde.
tinha piada uma descrição de lisboa com "um rapaz a pensar naquilo,..."
EliminarTem graça descrever Lisboa assim...falta-me comprar o livro!
ResponderEliminarvale a pena a.r. ;)
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