31 dezembro 2013









fábula  sobre  borges  sobre  wilde







dedicou-se o mago bibliotecário, no fervor de buenos aires, ainda a otras inquisiciones
numa escolha pessoal de magistrais pequenos ensaios sobre os seus ícones literários.
num refere que citar o nome de wilde é mencionar um dandy que também fosse poeta,
é evocar a imagem de um cavalheiro dedicado a espantar com gravatas e com metáforas,
a noção de arte como um jogo selecto ou secreto, e o poeta como um laborioso artífice.


borges intui essa beleza de um wilde sempre a oscilar entre os estetas e os decadentes
nesse agitado declínio de fin-de-siécle sob uma opressiva pompa de baile de máscaras
e maravilha-se com a citada virtude da insignificância técnica e uma sintaxe simples:
meros instrumentos da sua grandeza intrínseca feita invenção permanente de si próprio
descrita num conjunto de imagens poéticas e aforismos tão universal quanto infinito.


mas é também o mesmo wilde que refere que todos os homens matam a coisa que amam
e que confessa em de profundis que arrepender-se de um acto é modificar o passado;
wilde escreve que não há homem que não seja, em cada momento, o que foi e o que será
e borges reconhece que nele há um engenhoso clássico que sabia ter demasiada razão…
e fica a suspeita de um argentino cego na procura de um elo com um irlandês que o via.


quando borges admite ser custoso imaginar o universo sem os epigramas de wilde
e que essa dificuldade os torna menos plausíveis, é outro daqueles labirintos circulares
que nos propõe: haveria já algo de um jorge luis num oscar fingal que sabia ser o outro.
por isso tenho pena que wilde não pudesse ter lido a escrita de sonhos e tigres de borges
e lamento que não se possa confirmar que alguma vez se tenham olhado num espelho.























[ avenida da liberdade ]











30 dezembro 2013










Um milagre qualquer põe sombras nos teus olhos
um rimel especial para tornar castanho o olhar
sob a pressão das pálpebras indecisas
vieste assim triste é essa a sabedoria de prender
os corpos uma laranja que se solta
ao ritmo do coração desarranjado
as pessoas tristes não sabem soluçar
o pensamento está preso fundo muito fundo
e é por isso que apenas se deixam adivinhar
vieste assim triste como eu não sabia
foi ontem há muito tempo esquecemos
ficámos esquecidos a olhar o tempo
trocámos longas cartas com ausência de luz
queimadas desfeitas nas nossas mãos
vieste assim triste e fiquei a olhar-te a pensar
na escuridão a soletrar palavras desconhecidas
vieste assim triste e virás repetidamente virás
até o meu olhar aprender a olhar o teu
vejo ao longe o mar que ainda brilha
penso em ti assim triste que não virás
as sobras frias do peixe frito sobre a mesa.











Carlos Alberto Machado





















o engenheiro álvaro de campos procurava um oriente ao oriente do oriente.
gosto de pensar que, no canal do suez, a bordo, talvez este azul o ajudasse...


























janelas de lisboa










29 dezembro 2013







a que queres que saiba a minha boca? a chiclete de melão





tenho uma faca no peito, rente à vértebra perfuradora, que me dificulta a concentração. não é grave, o delito, bem o sei e já mo atestaram os sabedores também, peritos arqueológicos, classe médica distinta, de bloco branco na mão. um golpe no peito facilita a respiração, e quiçá, por que não, um pouco mais a sul, a tumultuosa digestão das asas de borboletas e das bolas de sabão. e um pouco de sangue espilrante fica sempre bem a quem sente o que não convém, já dizia a mãe de alguém. olha como sangra a apaixonada, coitada, dirão, aplaudindo o vazamento, a película rasgada, a pele macerada, e eu, salpicando com jeito, a preceito, mas sob pouca concentração, as pedrinhas da calçada, portuguesa, com certeza, irei exibir-me na grande praça do município. procuro-te e não te vejo. a estátua lá continua, homem a cavalo, olhares a jusante, tudo tão distante, turistas roliços, mostrando os dedos gordos dos pés, pombos catando o chão. sinto-me um abajur com cúpula de flor, estalada. tulipa molhada. sentada. olha como sangra, meu amor, pensarei, olha como ainda sangra o meu coração.








nAnonima











[ lê-se muito melhor aqui ]










ouvi esta velha canção dos boomtown rats há dias na rádio: recordei os tempos do renascimento da pop pós-punk (whatever that meant…) e sobretudo um bob geldof idealista q.b. 
também não acredito que ele ainda acredite que há sempre alguém a olhar-nos - mas gosto da ideia de numa noite como esta merecer ser beijado pelo menos uma ou duas vezes.



On a night like this I deserve to get kissed at least once or twice
You come over to my place screaming blue murder, needing someplace to hide.
Well, I wish you'd keep quiet,
Imaginations run riot,
In these paper-thin walls.
And when the place comes ablaze with a thousand dropped names
I don't know who to call.
But I got a friend over there in the government block
And he knows the situation and he's taking stock,
I think I'll call him up now
Put him on the spot, tonight.

They saw me there in the square when I was shooting my mouth off
About saving some fish.
Now could that be construed as some radical's views or some liberals' wish.
And it's so hot outside,
And the air is so sweet,
And when the pressure drop is heavy I don't wanna hear you speak.
You know most killing is committed at 90 degrees.
When it's too hot to breathe
And it's too hot to think.

There's always someone looking at you.
S-s-s-s-someone.
They're looking at you.

And I wish you'd stop whispering.
Don't flatter yourself, nobody's listening.
Still it makes me nervous, those things you say.

You may as well
Shout it from the roof
Scream it from your lungs
Spit it from you mouth
It could fall on deaf ears to indulge in your fears
There's a spy in the sky
There's a noise on the wire
There's a tap on the line
And for every paranoid's desire...

There's always Someone looking at you.
S-s-s-s-someone looking at you...
They're always looking at you.










28 dezembro 2013









«David [Bowie] quietly tells me, “You know, I've had so much sex and drugs that I can't believe I'm still alive”, 
and I loudly tell him, “You know, I've had SO LITTLE sex and drugs that I can't believe I'm still alive”»







Morrissey  (in “Autobiography”)




















morrissey
peter anderson



















Quem disse que o teu nome é uma espada
e as tuas mãos dois rios transparentes?
Quem te acordou naquela madrugada?
O voo da águia? O silvo das serpentes?

Quem sabe que és a minha namorada
e me guardas os beijos mais ardentes?
Quem fez uma canção desesperada
com o sexo dos anjos impotentes?

Ó meu amor, quem foi?, quem foi que disse
que se durante a noite alguém nos visse
fazendo amor de corpos abraçados

nos faria morrer de orgasmo e sede
ou apenas, encostados à parede,
em nome da alegria fuzilados?










Joaquim Pessoa










27 dezembro 2013







nicholas rodney drake deu muito poucos concertos, e a maior parte deles como número de abertura para um artista mais famoso, como aconteceu com os fairport convention. consta que, ao contrário das gravações em estúdio, as suas actuações ao vivo eram sempre breves e até algo desagradáveis, sobretudo porque não havia empatia com o público. 
na verdade, como muitas das suas canções necessitavam de uma afinação de guitarra diferente da convencional, ele interrompia o concerto para ajustar a guitarra e só longos minutos depois apresentava a canção seguinte, tornando impossível qualquer noção de conjunto e ritmo. e nunca, nunca dizia uma palavra.




Betty came by on her way
Said she had a word to say
About things today
And fallen leaves.

Said she hadn't heard the news
Hadn't had the time to choose
A way to lose
But she believes.

Going to see the river man
Going to tell him all I can
About the plan
For lilac time.

If he tells me all he knows
About the way his river flows
And all night shows
In summertime.

Betty said she prayed today
For the sky to blow away
Or maybe stay
She wasn't sure.

For when she thought of summer rain
Calling for her mind again
She lost the pain
And stayed for more.

Going to see the river man
Going to tell him all I can
About the ban
On feeling free.

If he tells me all he knows
About the way his river flows
I don't suppose
It's meant for me.

Oh, how they come and go
Oh, how they come and go.


















Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Talvez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.










Pablo Neruda












[lê-se melhor aqui]













four darks in red
mark rothko










25 dezembro 2013













montras de lisboa



















A vida responsável







Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
Em não dizer inconveniências,
Esmerar-me na prosa de umas folhas
E estou-me nas tintas para elas,
Retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
Responder ao correio, estender roupa,
Declarar rendimentos, ler uns livros,
Fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
De ter o tempo todo que quisesse
Para fazer só coisas esquisitas,
Coisas desnecessárias, prescindíveis
E, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.










Amalia Bautista