31 janeiro 2022






leituras  de  janeiro






 


 













:: notas ::

 

pessoa

richard zenith

ed. liveright

 

finalmente! uma biografia de pessoa como deve ser - e provavelmente a definitiva. e se é triste ter de a ler em inglês assinada por um americano, fica a consolação de não ter de a ler na tradução, provavelmente em acordês (um insulto para biógrafo e biografado) que aparecerá por aí lá para o verão. nunca a infância do escritor e a génese dos seus heterónimos foi assim narrada, com detalhe e recurso aos milhares de notas, apontamentos e fragmentos que enchem a célebre arca, desde poemas dos seus eus a textos em prosa, passando pelos inevitáveis mapas astrológicos, cartas, artigos de colaboração em jornais e inúmeras anotações avulsas. narrativa simples e despretensiosa, sempre acompanhada pelo minucioso suporte de todo o ambiente social, político, familiar e profissional que rodeou pessoa, esta "vida e obra" poderia ser considerada, de certo modo, quase uma auto-biografia na terceira pessoa de um heterónimo-a-haver - e esse será o melhor elogio possível. este volume (mais de mil páginas) vai figurar decerto no top de livros lidos este ano.

 

 

a cruzada das crianças

marcel schwob

ed. bcf

 

tornou-se quase uma lenda: no ano de 1212 um rapaz alemão (há uma versão em que é francês), num êxtase após uma visão de cristo, teria conduzido um grupo de crianças através dos alpes, rumo ao sul de itália, onde as águas do mediterrâneo se abririam para os deixar passar, rumo à terra santa que pretendiam libertar. hoje pensa-se que teriam chegado a ser alguns milhares, não apenas crianças mas também adolescentes e jovens órfãos ou pedintes, ingénuos e ignorantes. muitos teriam dispersado, outros morrido de doenças ou, partindo de marselha ou génova, desaparecido em naufrágios e, se alguns chegaram a alexandria, decerto vendidos como escravos. este livro é um exemplo perfeito de como a literatura pode interpretar um facto dito histórico. a visão genial e quase poética de schwob - num texto tão belo quanto curto, cinco meras dezenas de páginas - consiste na reunião de oito narrativas pessoais, pela voz de participantes ou observadores, dessa estranha peregrinação.

 

 

proust's duchess

caroline weber

ed. knopf

 

sabe-se hoje que a duquesa de guermantes, personagem de "à la recherche du temps perdu" de marcel proust, foi inspirada em três mulheres famosas no final do séc. xix: as elitistas cortesãs élisabeth de caraman-chimay (comtesse greffulhe), laure de sade, descendente do "divino marquês" (comtesse chevigné) e geneviève straus, a viúva do compositor georges bizet. apesar da sua condição de burguês e judeu, proust foi colega de liceu do filho de bizet e, com o decorrer dos anos, acabou por frequentar e conhecer bem os "salons" das três "socialites" mundanas, tendo convivido com a maioria do "jet set" parisiense desses anos dourados, em que montesquiou, maupassant, haas (o futuro swann), os rothschild e muitos outros mais forneceram a matéria prima para a saga que viria a escrever vinte anos depois. mas mais do que a reunião das biografias dessas três damas nesse período de tempo, o livro é um retrato vivo e muitíssimo bem (d)escrito desse mundo, hoje quase mítico, da belle époque parisiense.

  

 






28 janeiro 2022

 


 


fábula  para  john  steinbeck




bem sei que há ratos e homens a leste do paraíso

e pastagens do céu entre as amargas vinhas da ira

mas o que eu mais quero é saber dos paisanos de

tortilla flat e sentir-me um errante vagabundo em

cannery row. quem me dera vir a ser esse alguém

que escrevesse um ensaio erudito sobre os efeitos

morais, físicos e estéticos do ford modelo t sobre

a nação. porque é verdade, houve duas gerações

de americanos que conheciam melhor o sistema

planetário de engrenagens que o sistema solar, e

sabiam mais da bobina do ford t do que sobre o

clítoris. tal não impediu no entanto que grande

parte dos bebés desse período tivesse sido afinal

concebida dentro de um modelo t e não poucos

nascido nele até. foi ele quem abalou o alicerce

do conceito de propriedade privada. um alicate

deixou de ter dono e uma bomba para os pneus

passou a pertencer ao último que a tinha usado.

algo no individualismo ficou tão distorcido que

nunca mais recuperou. e após os teus livros uma

certa ideia da escrita, em bom rigor, também não. 

 




19 janeiro 2022

 



quando me perguntam o que é o trabalho de encenação
numa ópera, lembro-me sempre deste belo exemplo:











13 janeiro 2022

 




revi há dias este velho thriller de brian de palma.
o tema da banda sonora permanece imaculado...












10 janeiro 2022


 


 

montes  de  tempo

 

 

  

 

temos montes de tempo, disse-me a funcionária

do arquivo, provavelmente consciente da minha

ansiedade perante a dimensão da busca e a cada

vez mais próxima hora de encerramento daquele

serviço. montes de tempo, repetiu, talvez com o

intuito de me tranquilizar. e eu pus-me a pensar

 

 

em montes feitos de tempo, imaginando breves

montículos de alguns segundos apenas, colinas

de várias horas, serras durando mesmo alguns

dias e cordilheiras ainda mais demoradas. não

sei se terei deixado escapar um sorriso, porque

a vi olhar para mim com repousada candura e

 

 

quase a ouvi murmurar que tinham himalaias

enquanto a pesquisa genealógica, pela minha

fértil imaginação afinal concluída bem dentro

do horário, revelava inesperados antepassados

tibetanos e até um monge budista para quem o

tempo jamais se medira com base na orografia.

 

 





05 janeiro 2022

 



uma boa surpresa no final do ano passado, o novo dos happy mess
(aqui num clip que rouba imagens de "week-end" de jean-luc godard)











01 janeiro 2022

 


 

 


As  visões  de  Hildegarda  de  Bingen

 

 

 


Até aos quarenta anos

insistiram em dar-me óculos para ver ao longe.
Depois dos quarenta anos,

insistiram em dar-me óculos para ver ao perto.

Vi mal metade da minha vida.

A outra metade? Também.

A paisagens enevoadas

sucederam-se ensonadas letras:
chovia entre mim e a realidade,

como se fosse Inverno sempre

e fosse o Norte sempre mais além.

 

Agora fecho os olhos, abatida,

e pergunto-me se saberei passar

do olhar à visão.

 

 

 


Gemma Gorga