25 setembro 2020

(in memoriam :: juliette gréco)



 



 

fábula  de  um  amor  impossível



[ sobe o pano. é abril em saint-germain-des-prés, na paris de 1949 ]

 


julieta:
     eu nunca tinha visto um homem assim tão belo.

e não voltei a ver. ele tocava e eu observava-o de

perfil: um deus egípcio. foi michèle, a mulher de

boris vian, quem mo apresentou e eu fiquei logo

fascinada. ele tinha essa beleza e irradiava génio.

era força e estranheza ao mesmo tempo. era a

diferença e a modernidade do que ele tocava.

eu tinha vinte anos e entendia aquela liberdade.

tudo era partilhado porque não tínhamos meios,

mas estávamos apaixonados. penso que ele ficou

algo surpreendido por isso, pela minha liberdade

e pela minha ausência de opinião e perspectiva

sobre a questão racial. depois, não sei, talvez a 

música fosse nele mais forte que tudo. eu não

podia competir com um trompete e ele partiu.

 

 

romeu

a música tinha sido toda a minha vida e não tinha

olhos nem tempo nem espaço para mais nada, até

ao meu encontro com ela. ela trouxe-me isso, o que

era gostar de algo que não a música. foi a primeira

mulher que amei como um ser humano, num plano

de liberdade e igualdade. ela era tão bela, tão só ela.

e, claro, eu não falava francês, ela não falava inglês:

comunicávamos por expressões, numa linguagem

corporal. depois, já só falávamos com os olhos e os

dedos, não havia lugar para o falso. durou algumas

semanas, e então senti que ia ser como um daqueles

amores trágicos, eu só podia estar preso à música e

 fui-me embora. mais tarde, uma vez jean-paul sartre

perguntou-me por que não nos tínhamos casado.

respondi-lhe que não queria que ela fosse infeliz.

 

 

[ cai o pano sobre juliette gréco e miles davis ]

 

 




23 setembro 2020



...and she knows as she watches over the evening star
that we'll all be together no matter where we all are...








20 setembro 2020

 

 

 


Um  poema  de  Carl  Sandburg

 

 

 

Quero-te

como as raízes secas

desejam a chuva

no verão

 

como o vento deseja

as folhas
do chão

 

e perdoa

dizer tudo isto tão

depressa.

 

 

 

 

Emanuel Félix

 




12 setembro 2020





vamos  viver  para  lisboa




vamos viver para lisboa, disseste-me, e o vento forte
desalinhava-te os cabelos. haverá sempre uma cave
ou um sótão para alugar, eu posso tentar encontrar
um part-time, a faculdade não me vai ocupar assim
tanto. aqui perto da baixa, eu sei, precisas de ver a
água do rio, interrogar as mudas tágides e passar os
dias no cais das colunas à espera de qualquer coisa.
os teus olhos brilhavam e, acrescentaste, estou certa
de que terás inspiração para terminar o livro, posso
ajudar-te a rever os poemas, sinto que correrá bem.


vamos viver para lisboa, disseste-me, e o vento forte
desalinhava-te os cabelos. eu sabia que para ti toda a
cidade mais não era que um cenário no palco onde
a nossa epopeia se iria escrever. e pude ver nos teus
olhos o fulgor baço das pedras da calçada, memória
fugaz de um cais de tristes náufragos aos nossos pés.


vamos viver para lisboa, disseste-me, e o vento forte
desalinhava-te os cabelos, os dois parados no passeio
sob a janela da nossa casa, ali na esquina que a rua
áurea faz com a da vitória, na derrota desse outono.





05 setembro 2020






acreditem ou não, isto (já) tem vinte anos
felizmente, continua a ser um instant classic