21 agosto 2020





chiado  dois  mil  e  vinte




sei que és como eu, pensas na morte quase como
um divertimento, um pequeno jogo inocente em
que o importante, claro está, é a vida que iremos
viver após o fúnebre desenlace. alguém disse que
o pior na morte deve ser a primeira noite. não é
possível discordar, a segunda noite forçosamente
terá de ser menos penosa, e constatas que há uma
vida nessas noites, mesmo que não volte a haver
dias. são noites onde vai acontecendo tudo o que
imaginaste para a vida no além. se sonhaste com
nuvens e harpas, elas aí estão, embora às escuras.
se ambicionaste um prado perpétuo, deleita-te na
sombria relva. eu apenas gostaria de poder trocar
os portões perlados por um balcão de bar, e todas
as celestiais trombetas por um trompete ou quem
sabe um saxofone rouco, nem essa primeira noite
custaria a passar. são coisas destas que ocupam o
teu pensamento enquanto admiras a rua deserta
em pleno chiado. quando respirares o vírus, será
que ele sabe que morrendo contigo vai ouvir jazz
noites sem fim, terá ele noção de que em lisboa
tudo se propaga como no país das três sílabas, e
de plástico que era mais barato. penso nas noites
após a vida, feira cabisbaixa sem vista para o mar
e confesso, ai o'neill, tu de ombro pela ombreira
e eu para aqui assim, de mascarilha pela máscara.





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