Depois de amanhã
Se tivesse de escolher um favorito
dentre os quatro heterónimos de Fernando Pessoa,
teria de ser Álvaro de Campos,
escolhido para o papel de Sensacionista Cansado.
Esta manhã nada acontece de especial,
só a gata enrolando-se novamente numa cadeira
e a água para o chá a começar a ferver –
uma cena que o Álvaro teria achado inteiramente suficiente,
ele que não começou nem terminou nada,
que prefere a janela
à porta, o amanhã ao hoje
ou melhor ainda, o depois de amanhã,
essa cidadela de quietude, intocada
pela ambição ou o trabalho, sem mácula sequer
de uma mão a aproximar a agulha de um disco
ou deslocando uma cadeira do pátio para o sol.
Sim, gosto do Pessoa sonhador
que evita os eléctricos e os mercados,
e que, como um floco de neve, quase nem existe,
mas isso não significa que não goste dos outros.
Agora mesmo, na janela das traseiras,
os quatro Pessoas perseguem-se uns aos outros
à volta de uma grande árvore, segurando os seus chapéus,
cada um deles vestido de forma mais extravagante
que o outro. Acima deles um céu pálido,
nuvens brancas como barcos à vela sobre Portugal.
Consigo ver tudo desde o meu sofá onde
toco algumas melodias tristes no flautim.
Entretanto, a água para o chá evaporou-se no ar,
e a coroa de chamas queima apenas a chaleira,
e a gata mudou de lugar.
Ela adora a cama por fazer, os lençóis montanhosos.
Billy Collins
[ trad. Ricardo Marques e Ricardo Vasconcelos ]