Falo de um homem que possuía livros de poemas. Foi talvez o
único real leitor. Ele abria os livros, um livro. Escolhia um poema. Era um
ritual misterioso. Porque ele raspava as letras da página, cuidadosamente, como
para conservar a integridade do papel. Raspava e reunia os pedaços negros.
Aquecia então água com o vagar próprio da vertigem. Uma estranha ciência de
vapores.
A infusão sucedia: a escura substância do poema misturava-se
mais e mais com o fervor da água, até ao ponto em que tudo aquilo era vivo. O
homem bebia então o poema e o poema flutuava no sangue, atingindo todos os
lugares do corpo, reclamando todos os lugares do corpo. Não era previsível o
efeito do poema. Cada poema dissolvido, sorvido, feito homem, trazia consigo
uma possibilidade própria. O homem crescia com o poema, crescia mais para si,
mais para o poema.
O homem que possuía livros de poemas, possuía uma biblioteca
em branco. Páginas e páginas de poemas arrancados sem vestígios, um crime
perfeito. Era uma biblioteca poética. Uma biblioteca que podia arder.
Vasco Gato
Este é dos que acertam mesmo n' "um poema por dia não sabe o bem que lhe fazia".
ResponderEliminarEntão o segundo parágrafo... Muito bom! ;)
;)
Eliminar