13 fevereiro 2015





A desistência da memória




Tenho-me esquecido de tudo. Da rua onde vivias, dos pontos de referência que davam à rua onde vivias, o nome da estação de metro que apanhávamos, o nome do café onde esbardalhei o chocolate do croissant na compostura festiva da minha saia e onde te esbardalhaste a rir com a minha cara chocada. Esqueci-me de muitos dos assuntos das nossas conversas, de como fomos de umas às outras. Esqueci o teu número, o teu percurso académico, as minudências da nossa convivência.

Mas não esqueci o hotel ao fundo, visto da altura da varanda, e a rua sempre a rugir de trânsito, nem o peso da manta de lã, nem o cheiro do frango assado, nem o teu joelho dobrado servindo de apoio ao meu queixo, nem os teus olhos tristes, nem a última mensagem com a promessa que não cumpriste, nem aquele abraço que depois foi o último, nem o lugar gélido que escolheram para te encontrar pela última vez, nem o som dos meus passos no cimento triste da cidade fantasma onde te deixei.





Carla Pinto Coelho






4 comentários:

  1. ... E a memória a atazanar-nos com aquela parte tramada de fugir ao nosso controle. Às vezes, escasseia. Noutras alturas, sobeja.
    Há dias, e relacionado com a memória, disseram-me: "Pensar em demasia pode ser tão pernicioso como não pensar. Quando? Quando se pensa longe, sendo preciso pensar perto, quando se pensa profundamente, estando as coisas mesmo à frente dos olhos, quando se pensa e o melhor seria mesmo não pensar."
    E este texto da Carla, que está muito bom - sem espinhas, como se costuma dizer! - levou-me a cruzar uma série de coisas que se passam entre o coração e os neurónios.
    Bom fim-de-semana, José Luís!

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  2. Ainda não me habituei a ver-me partilhada. Talvez um dia, quem sabe!

    Entretanto, já ando a juntar uns dinheiros para pagar o teu trabalho editorial. (:

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