Quando
nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando,
do meio destes amigos que não conheço,
Do
meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do
meio destas vontades involuntariamente
Tão
contrárias à minha, tão contrárias a mim?!
Ah,
navio que partes, que tens por fim partir,
Navio
com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio
com qualquer coisa com que nos afastemos,
Navio
de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta,
a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só
válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade,
esquecimento que se lembra,
Da
saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da
saudade, remota sensação do incerto
Vago
misterioso antepassado que fomos,
Renovação
da vida antenatal, [...]
Absurdamente
surgindo, estática e constelada
Do
vácuo dinâmico do mundo.
Que
eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que
têm realidade na alma,
Que
não são mitos, são a realidade
Que
não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que
vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la...
Eu
quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para
que hei-de estar onde estou se é só onde estou?
Para
que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,
Mas
isto tudo é como uma realidade longínqua
Daqueles
que não partiram ou daqueles
Cujo
lar é nenhum e de memória
Quando,
navio [...], deixaremos o lar que não temos?
Navio,
navio, vem!
Ó
lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,
Navio
carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio
de passageiros de todas as nações diversas,
Navio
todos os navios,
Navio
possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente,
incoerentemente,
À
busca de nada, À busca de não buscar,
À
busca só de partir.
À
busca só de não ser
À
primeira morte possível ainda em vida —
O
afastamento, a distância, a separar-nos de nós.
Porque
é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É
sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A
casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo
que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não
temos senão nós dentro e fora de nós,
Não
temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a
sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a
brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a
gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a
roda multicolor girando branca aos olhos
Do
fantasma inteiro que somos,
Lágrima
das pálpebras descidas
Do
olhar velado divino.
Navio
quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A
remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá.
Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O
rio entre mim e a margem.
O mar
entre mim e o cais,
A
morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!
Álvaro
de Campos
Já a meio desconfiava que seria um poema de Álvaro de Campos, mas nunca o tinha lido. É bonito, é poesia verdadeira. Obrigada pela partilha neste cantinho!
ResponderEliminarhttp://algibeirasfuradas.blogspot.pt/
apareceu na recente "obra completa", ed. tinta da china, que inclui alguns inéditos (muitos deles, como este, inacabados)
Eliminarobrigado pela visita ;)