19 agosto 2014





fábula  para  borges *




construíste buenos aires num mapa mitológico que só tu vias
e muito antes da cidade perceber que se identificava com ele,
imaginaste alfabetos secretos nas manchas de um jaguar
e confessavas por vezes teres pena de não teres nascido tigre.
gostavas de histórias em que um homem sonha com outro
até perceber que ele próprio é um sonho pelo outro sonhado,
compreendias que ser cego é ser fácil perder-se em labirintos
e temias os espelhos por ignorares o que estaria do outro lado.

desejavas que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca
porque te sabias um livro escrito e ainda por escrever,
admitias que a linguagem só pode simular a sabedoria
e disseste que com o tempo o poema se converte em elegia.
citavas de cor passagens dos livros que outros te leram:
em ti se repetia de novo um antigo diálogo com as palavras.
talvez por isso também gostasses de imaginar um universo
em que os livros não fossem necessários, por nele qualquer um
ser capaz de qualquer frase ou um novo verso, em qualquer língua,
e reconhecias que cada livro contém a promessa de todos os outros.

enfeitiçado pelos paradoxos do tempo e pela magia do fantástico
foste procurar esse texto infinito, que contém todas as combinações
possíveis de todas as letras e palavras em todas as linguagens,
a biblioteca ideal, a tua biblioteca de babel, esse infindável acervo
incluindo todos os livros concebíveis, passados, presentes ou futuros…

mas creio que no fim percebeste que o oposto era mais que provável:
todos os livros poderiam ser apenas um, e nesse haver uma só palavra.






*  para todos os borges em nós borges

9 comentários:

  1. Conseguiu resumir magnificamente todo o universo de Borges. Já lhe disse o quanto adoro ler as suas fábulas? :-)))

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  2. Ler o que escreves e perceber que brincas com as palavras da forma mais bonita que conheço. Mais do que perfeito JL :))

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  3. Esta fábula recorda muito bem o quanto Borges contribuiu para renovar a linguagem da ficção, como afirmam muitos estudiosos destes assuntos e é perceptível pela leitura da sua obra.
    Também gostei muito desta fábula porque o José Luís utilizou um registo diferente do que tem mostrado aqui nos últimos tempos, mas que considero igualmente delicioso!

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  4. Lê Pedro Páramo! Se ainda não leste, ficarás ainda mais deliciado e verás onde Borges foi beber ;)

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    Respostas
    1. li há alguns anos. o rulfo é muito bom, mas olha que o "ficciones" é de '44 (...não sei quem bebeu de quem ;) …)

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    2. Ena, tens razão! :D

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