A cidade líquida
A cidade movia-se como
um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em algum lado. Não. Era a tontura. A
despedida. Não. A cidade talvez fosse de água. Como sobreviver a uma cidade
líquida?
(Eu tentava sustentar-me como um barco.)
As aves molhavam-se contra as
torres. Tudo evaporava: os sinos, os relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os
cabelos, o olhar. Havia peixes imóveis na soleira das portas. Sólidos mastros
que seguravam as paredes das coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam
alto do alto dos navios. Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam
dentro de casa. Dormiam em plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o
frio arroxeavam-lhes os lábios. Não viam. Amavam depressa ao entardecer. Era o
medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. Era um
espelho de outras cidades costeiras. Quando se aproximava, inundava os
edifícios, as ruas. Acrescentava-se ao mundo. Naufragava-o. Os habitantes que a
viam aproximar-se ficavam perplexos a olhá-la, a olhar-se. Morriam de vaidade e
de falta de ar. Os que eram arrastados agarravam-se ao que restava do interior
das casas. Sentiam-se culpados. Temiam o castigo. Tantas vezes desejaram soltar
as cordas da cidade. Agora partiam com ela dentro de uma cidade líquida.
(Eu
ficara exactamente no lugar de onde saiu.)
Filipa Leal
Li várias vezes e fiquei a pensar um bocado. Começou bem, portanto!
ResponderEliminarTalvez todas as cidades, todos os lugares, sejam líquidos. Nem sempre os sentimos assim. Ou melhor: talvez poucas vezes os sintamos nesse estado.
A cidade líquida é uma bela metáfora da voragem dos tempos. Interpretei-a assim.
Procurar a dose adequada de tranquilidade no tumulto da insegurança e da incerteza, pode ser tão desafiante e proveitoso, como difícil. O farol que vem logo a seguir, ajuda;)
Sabes o que é que me faz lembrar? O 'É a Aless' :)
ResponderEliminarpois a mim não lembra nada - quem está ao pé da cidade líquida está só ao pé dela… ;)
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