16 maio 2014








canção do terreiro do paço






está lisboa em dia de sol frio
e trânsito parado.
é quase inverno, mas vai manso o rio
marulhar no bugio
como em barco encalhado.
a rua do arsenal é o princípio
do meu deambular assim na baixa,
de atravessar a faixa
dos peões e passar no município,
olhando de caminho,
no seu mármore esguio, o pelourinho.

chegando à vastidão feita de arcadas
e a rasgar para o tejo
do terreiro do paço, onde apressadas
em bando, as mais lavadas
das tágides mal vejo,
vindas dos cacilheiros, matinais,
são horas já do incêndio das buzinas
em sombras pombalinas,
no volante de quantos dão sinais
em palavrões e gesto
de quem cedo se esgota num protesto.

o semáforo abriu mas não avança
o rebanho compacto
dos automóveis, um ardina lança
o seu pregão na dança
de dar o troco exacto
com o jornal, de carro para carro.
abrem as bancas três alfarrabistas
e ao centro, a dar nas vistas,
no bronze patinado a verde sarro,
lá está o d. josé
que aprecia melhor quem for a pé,

ou lembre, antes de entrar nos ministérios,
enigmas e passagens
sonâmbulas de arcadas e mistérios:
de chirico prefere-os
em silentes imagens.
mas não cabem aqui tais perspectivas
de hora lunar, quadrantes, manequins:
trepida nos confins
este rolar humano em marés vivas
e frio, azul, enxuto,
o céu tem falta aqui de um aqueduto.

mesmo a luz, que acidula por calcários
e outras geometrias
os tons fluviais e os seus contrários,
só restitui, dos vários
relentos, maresias,
fragmentos da memória, muito pouco,
e a quem vai açodado não inunda.
a pressa é a profunda
razão de ali se atravessar num rouco,
derrancado exercício,
entre os pombos vadios e o bulício.

passo ao martinho: a hora não é boa
e em flagrante de litro
nunca se poderá ver no pessoa
um bispo de lisboa,
por isso eu o desmitro,
sem encontrar aquilo que procuro,
sem hora absurda, arcanos, labirinto,
sem achar que pressinto
em tudo isto algum sentido obscuro
de mentira ou verdade,
do todo de uma vida ou de metade,

sem ver nisto a poética transposta
de um delicado, urbano,
lirismo de que às vezes mais se gosta
e a que lisboa encosta,
carlosbotelhiano,
mas só a confusão, o triste esgar
nas almas pós-modernas em cardume,
sem sequer o perfume
de uma melancolia a enredar
os timbres desde cedo,
como um lilás trepando em dia ledo.

canção amanhecendo no terreiro
do paço em desmazelo,
não penses que são modos de tripeiro
ou dor de cotovelo
pôr-me aqui a dizê-lo:
antes me desmentisses
sempre que eu te dissesse
que se nesta cidade andou ulisses,
às vezes não parece.









Vasco Graça Moura








1 comentário:

  1. disse-o no dia em que partiu e aqui deixei dele o seu retrato (por escrito) do elevador de santa justa: poucas pessoas do porto amaram tanto lisboa.
    e este instantâneo do terreiro do paço é mais um exemplo de que uma palavra vale mil imagens.

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