canção do terreiro do paço
está lisboa em dia de
sol frio
e trânsito parado.
é quase inverno, mas vai
manso o rio
marulhar no bugio
como em barco encalhado.
a rua do arsenal é o
princípio
do meu deambular assim
na baixa,
de atravessar a faixa
dos peões e passar no
município,
olhando de caminho,
no seu mármore esguio, o
pelourinho.
chegando à vastidão
feita de arcadas
e a rasgar para o tejo
do terreiro do paço,
onde apressadas
em bando, as mais
lavadas
das tágides mal vejo,
vindas dos cacilheiros,
matinais,
são horas já do incêndio
das buzinas
em sombras pombalinas,
no volante de quantos
dão sinais
em palavrões e gesto
de quem cedo se esgota
num protesto.
o semáforo abriu mas não
avança
o rebanho compacto
dos automóveis, um
ardina lança
o seu pregão na dança
de dar o troco exacto
com o jornal, de carro
para carro.
abrem as bancas três
alfarrabistas
e ao centro, a dar nas
vistas,
no bronze patinado a
verde sarro,
lá está o d. josé
que aprecia melhor quem
for a pé,
ou lembre, antes de
entrar nos ministérios,
enigmas e passagens
sonâmbulas de arcadas e
mistérios:
de chirico prefere-os
em silentes imagens.
mas não cabem aqui tais
perspectivas
de hora lunar,
quadrantes, manequins:
trepida nos confins
este rolar humano em
marés vivas
e frio, azul, enxuto,
o céu tem falta aqui de
um aqueduto.
mesmo a luz, que acidula
por calcários
e outras geometrias
os tons fluviais e os
seus contrários,
só restitui, dos vários
relentos, maresias,
fragmentos da memória,
muito pouco,
e a quem vai açodado não
inunda.
a pressa é a profunda
razão de ali se
atravessar num rouco,
derrancado exercício,
entre os pombos vadios e
o bulício.
passo ao martinho: a
hora não é boa
e em flagrante de litro
nunca se poderá ver no
pessoa
um bispo de lisboa,
por isso eu o desmitro,
sem encontrar aquilo que
procuro,
sem hora absurda,
arcanos, labirinto,
sem achar que pressinto
em tudo isto algum
sentido obscuro
de mentira ou verdade,
do todo de uma vida ou
de metade,
sem ver nisto a poética
transposta
de um delicado, urbano,
lirismo de que às vezes
mais se gosta
e a que lisboa encosta,
carlosbotelhiano,
mas só a confusão, o
triste esgar
nas almas pós-modernas
em cardume,
sem sequer o perfume
de uma melancolia a
enredar
os timbres desde cedo,
como um lilás trepando
em dia ledo.
canção amanhecendo no
terreiro
do paço em desmazelo,
não penses que são modos
de tripeiro
ou dor de cotovelo
pôr-me aqui a dizê-lo:
antes me desmentisses
sempre que eu te
dissesse
que se nesta cidade
andou ulisses,
às vezes não parece.
Vasco Graça Moura
disse-o no dia em que partiu e aqui deixei dele o seu retrato (por escrito) do elevador de santa justa: poucas pessoas do porto amaram tanto lisboa.
ResponderEliminare este instantâneo do terreiro do paço é mais um exemplo de que uma palavra vale mil imagens.