05 junho 2012






Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto




António Ramos Rosa







4 comentários:

  1. que maravilha! todo aquele que lê antónio ramos rosa entra numa nuvem... (começa assim a viagem, de cada vez que o lemos)

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  2. ... e nunca o livro se completa, nunca a viagem termina :)

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  3. como diz o poeta brasileiro Ramon Mello "... esse poema não tem fim, é o meio" (https://vimeo.com/42979350)
    :)

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  4. Belíssimo poema.
    Já conhecia, mas é sempre um prazer e um privilégio poder reler.
    Beijos, JL

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