Do culto dos livros
No
oitavo livro da Odisseia lê-se que os deuses tramam desgraças para que às
futuras gerações não lhes falte algo que cantar; a declaração de Mallarmé: “O
mundo existe para chegar a um livro”, parece repetir, uns trinta séculos depois,
o mesmo conceito de uma justificação estética dos males. As duas teleologias,
no entanto, não coincidem integralmente; a do grego corresponde à época da
palavra oral, e a do francês, a uma época da palavra escrita. Numa fala-se de
contar e na outra de livros. Um livro, qualquer livro, para nós é um objecto
sagrado: já Cervantes, que talvez não ouvisse tudo o que dizia a gente, lia até
“os papéis rasgados das ruas”. O fogo, numa das comédias de Bernard Shaw, ameaça
a Biblioteca de Alexandria; alguém exclama que irá arder a memória da
humanidade, e César diz-lhe: “Deixa-a arder. É uma memória de infâmias”. O César
histórico, na minha opinião, aprovaria ou condenaria a sentença que o autor lhe
atribui, mas não a julgaria, como nós, uma piada sacrílega. A razão é clara:
para os antigos a palavra escrita não era outra coisa senão um sucedâneo da
palavra oral.
Jorge
Luis Borges in “Outras inquirições”
(1952)
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