23 abril 2012





Do culto dos livros




No oitavo livro da Odisseia lê-se que os deuses tramam desgraças para que às futuras gerações não lhes falte algo que cantar; a declaração de Mallarmé: “O mundo existe para chegar a um livro”, parece repetir, uns trinta séculos depois, o mesmo conceito de uma justificação estética dos males. As duas teleologias, no entanto, não coincidem integralmente; a do grego corresponde à época da palavra oral, e a do francês, a uma época da palavra escrita. Numa fala-se de contar e na outra de livros. Um livro, qualquer livro, para nós é um objecto sagrado: já Cervantes, que talvez não ouvisse tudo o que dizia a gente, lia até “os papéis rasgados das ruas”. O fogo, numa das comédias de Bernard Shaw, ameaça a Biblioteca de Alexandria; alguém exclama que irá arder a memória da humanidade, e César diz-lhe: “Deixa-a arder. É uma memória de infâmias”. O César histórico, na minha opinião, aprovaria ou condenaria a sentença que o autor lhe atribui, mas não a julgaria, como nós, uma piada sacrílega. A razão é clara: para os antigos a palavra escrita não era outra coisa senão um sucedâneo da palavra oral.





Jorge Luis Borges  in  “Outras inquirições” (1952)




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