30 junho 2021







leituras  de  junho






  


  


  


  


  







:: notas ::


dias da noite

silvina ocampo

ed. snob

 

ao contrário de "a fúria", colecção de histórias muito centradas em episódios irreais de violência e crueldade, mas narrados como se isso nada tivesse de notável ou merecesse um juízo de valor, em "dias da noite", publicado uma década depois, o conjunto de contos é bem mais diversificado - e nunca previsível. personagens e enredos desarmam-nos sempre pela sua lógica ilógica (tão do agrado de jorge luis borges) e a autora faz gala numa narrativa inocente e maliciosa ao mesmo tempo, onde o inesperado e o fantástico se cruzam, porém nunca como seria expectável. e talvez seja nesta colectânea que silvina ocampo - num olhar de mulher presa a uma infância de sonhos, medos e mistérios - mais tenta escrever como se estivesse a pintar, recordando e revivendo o seu passado de artista plástica próxima dos surrealistas (e por essa razão em certos momentos foi inevitável estabelecer uma comparação com alguns contos de leonora carrington). saúda-se a edição, em português são e escorreito.

 

 

sweet bean paste

durian sukegawa

ed. one world

 

novela-maravilha, sensual e gustativa, temperada pela magia da culinária. com base nesta história a realizadora naomi kawase assinou um belo filme - e este foi um dos raros casos em que só após o ter visto consegui ler o livro. mas mesmo com o filme presente, nunca as palavras deixaram de me sugerir novas imagens para esta fábula singular: sentaro dirige uma pastelaria, situada numa rua com cerejeiras e especializada em dorayakis, uma espécie de panquecas recheadas com pasta doce de feijão vermelho. tokue, uma senhora de idade, oferece-se para o ajudar na confecção da pasta e, graças à sua receita ancestral e secreta, logo o pequeno negócio floresce. com o tempo são revelados segredos e vai-se cimentando uma estranha amizade entre os dois, que redime velhas feridas reabertas. para saborear com deleite.

 

 

fifty sounds

polly barton

ed. fitzcarraldo

 

não sei japonês mas gosto sempre do sabor a literatura que sempre encontro nas traduções de polly barton que já li. neste livro, um misto de biografia e ensaio, a autora recorda as experiências passadas no japão como professora de inglês e analisa, exaustivamente e com graça, o que é isso de viver, sentir, pensar e falar uma segunda língua.

 







28 junho 2021

 

 

 

 

A  magia  do  mel


 

 

 

Enquanto se orienta

entre as terminações

nervosas

da alfazema,

 

a abelha traduz

a língua das flores 

na língua do mel.

  

Na torrada de cada manhã

nós lemos

o nome do bosque

onde corremos em crianças.

 

 

 


 

Gemma Gorga

 

 




19 junho 2021





A  voz

 

 

 

Aqueduto por onde maduro

correm as palavras.

Distribui o

                        relato

 

consoante a sede.

Muitos ouvidos 

formam um

                        regato.

 

 

 

 

Maria F. Roldão






17 junho 2021

10 junho 2021

 



ó  pátria

 

 

 

 

 

entre as brumas da memória

ó pátria, confessa que já não 

sabes lá muito bem quem és

dou-te um conselho gratuito

toma memofante, pequena,

toma memofante ou gingko

biloba ou magnésio ou uma

vitamina do vasto complexo 

bê ou até extracto de ginseng

caso não queiras tratamentos

com fosfatidilserina, os velhos

ácido fólico ou pregnenolona

depois, ó pátria sente-se a voz

dos teus egrégios avós mudos

mas muito rouca e nota-se a

garganta inflamada, dás por

ti dependente de pastilhas e

xaropes, descrente no futuro

desanimada sobre a terra e

sobre o mar, cada vez menos

valente, cada vez mais mortal

 

 





06 junho 2021


 



Como  saber  se  um  poema  funciona

 

 

 

Imagina uma casa japonesa:

 

através das paredes
de papel

do poema

 

hás-de poder ouvir

o silêncio do vizinho

a ler este poema.

 

 

 


Gemma Gorga

 

 





01 junho 2021




 

um  retrato  na  estrada  de  sintra 

 



 

houve alguém a admitir uma vez que

um retrato nunca é uma semelhança.

nem poderia ser. na verdade, quando

uma emoção ou facto se transforma

numa fotografia, já não é sentimento,

deixa de ser real, passa a uma opinião.

por essa razão jamais uma fotografia é

imprecisa. todo o retrato captado por

uma câmara é preciso e exacto. e por

isso nenhum poderia ser verdadeiro,

mais ou menos como o pensamento

que me invade nesta viagem interior

e me ocorre ao volante do chevrolet

pela estrada de sintra. logo a seguir

arrependo-me por ter citado uma

involuntária mentira tripla. tudo

porque não sou eu quem conduz,

o carro é de outra marca qualquer

e a estrada de sintra foi convertida

em mero itinerário complementar.