29 março 2018




Árvores míticas




As árvores de Lisboa são uma cabeleira
flutuante, têm de Mallarmé as ruínas do
trágico cansado - o traço, as cores, a
paisagem abstracta. São só um deslize
tradutor que cedo repousa sem forçar
a revolta da ideia. Pensar é um clarão
carmíneo encaixado no vale, o espírito
pensante de um Vieira que observa
em parênteses sinais da quintessência.
As árvores de Lisboa são contrastantes,
descobertas, têm árabes pendurados,
judeus voando em passarolas e celtas
que, sem vergonha da derrota, sabem
que a verdade não sobrevive sem o
corpo do mito. Quando se riem, sujas
de orvalho, o tronco rasteja, enterra-se,
enrola-se, quando o espírito brilha,
antecipando o som, o derrame da morte.





Ana Marques Gastão




21 março 2018





se  o  que  escrevo  é  poesia





não, não fico embaraçado quando me perguntam
se o que escrevo é poesia. sinceramente, a maior
parte das vezes até acho engraçado pensarem isso
desta sucessão de palavras, do encadear de frases


em textos tão pouco válidos. e acrescento que me
diverte bastante a ideia de que a disposição dessas
linhas segundo uma estrutura formal que favorece
o alinhamento a uma das margens, permitindo de


modo nítido a sua truncagem, sugira intencionais
propósitos poéticos ao seu autor. alguém que regra
geral mais não fez que possibilitar o aparecimento
de algumas zonas deixadas em branco na página


que afinal se foi preenchendo quase sem querer.






11 março 2018





damos nome às coisas
que reconhecemos.

o que só existe dentro de nós
também tem nome
porque para se ter nome não
é preciso ter visto o sol.

há nas profundezas mais fundas
peixes às escuras
com luz própria.

quando alguém descobre um destes seres,
faz uma festa e compõe
um nome em latim.






André Tecedeiro





08 março 2018





ontem ao fim da tarde, a arrumar discos antigos, dei com o liege & lief,
o disco dos fairport convention que dizem ser o pai do folk-rock britânico,
e a voz da sandy denny, que não ouvia há tanto tempo, voltou a enfeitiçar-me









06 março 2018





lamento para a língua portuguesa




não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas. 





Vasco Graça Moura