29 dezembro 2016






. resoluções para o ano novo .

{sim, daquelas que repetiremos daqui a um ano por as não termos cumprido}


há algumas mas quero sobretudo destacar estas:


1. elaborar finalmente, à semelhança de amigos e familiares que a conseguem completar, uma lista dos livros (com actualização e publicação regular) que fui lendo durante o período de tempo equivalente a uma translação solar.

2. formular o desejo de esperar que no ano que vem toda a classe política (governativa, parlamentar, autárquica, etc) deixe finalmente, independentemente da faixa etária, de estar tão bem retratada naquela velha canção do meu querido brassens:









26 dezembro 2016






um dos grandes azuis de willie dixon fecha o novíssimo disco dos rolling stones. 
para dinossauros que começaram por ser uma blues band de teenagers, há que admitir que ainda não esqueceram nada.










23 dezembro 2016





{ excerto de um episódio :: a queda de ícaro }



()

e esse conceito, posteriormente tão propagado,
do jovem ícaro como vítima da arrogância humana,
talvez seja desproporcionado e esteja até errado,
porque a sua morte se sucedeu a um feito extraordinário,
uma aventura ímpar não mais repetida pelo homem:
porque para ícaro a fuga, apesar da consequência trágica,
terá sempre valido a pena, pois pagaria qualquer preço
por esse sentimento de vitória sobre os muros do labirinto.

e ícaro tornou-se realmente imortal, tendo ganho um lugar
eterno na nossa imaginação por ter sido o único a conseguir
o que toda a humanidade desde sempre desejara fazer
ao observar fascinada o voo livre e sem esforço das aves:
poder um dia simplesmente imitá-las.

porque, como refere o perspicaz ovídio,
se algum pescador empunhando a sua cana,
ou um lavrador manobrando o cabo do arado
ou até um pastor apoiado no seu cajado
tiver erguido os seus olhos naquele momento,
e estupefacto visto pai e filho a voar pelos céus,
terá decerto ficado a pensar que só poderiam
ser dois deuses a caminho do eterno olimpo.

inúmeros são os artistas que a seu modo tentam,
muitos séculos depois, captar nas cores de uma tela
esse dramático episódio que a todos continua a fascinar,
como joos de momper e a sua visão do preciso momento
da queda, em que imaginamos as gotas da cera derretida
a cair sobre a água, e carlo saraceni e peter paul rubens,
ambos com a terrível imagem da desagregação das asas,
enquanto antoon van dyck e frederick leighton optam
pelo retrato de dédalo a dar os últimos conselhos a ícaro
antes do fatídico voo. para herbert james draper o filho
de dédalo mais não é que um glorioso anjo caído e, para
henri matisse, um vulto negro de coração ao rubro,
que dança triunfante ao redor de estrelas cadentes.

mas o melhor retrato é para mim o de pieter bruegel,
o qual, quando pintou “a queda de ícaro” que lhe é atribuída,
colocou em primeiro plano o lavrador, o pastor e o pescador,
mas mostra-os no desempenho dos seus afazeres quotidianos, 
compenetrados e quase indiferentes à pequena figura secundária
de ícaro que, no canto inferior direito do quadro, desaparece
no mar, não nos deixando sequer ver as fantásticas asas,
somente uma mão que cai inerte como uma pena na água,
numa alegoria ao triunfo da nudez crua da realidade
sobre a fantasia dos antigos mitos e a presunção estéril
de transcendência que habita qualquer vã aspiração humana,
como se alguém numa tragédia o dissesse melhor do que nós:

coro:
funesta máquina, que puseste a voar o homem que somos.
a terra e o mar sucumbiram ao nosso poder: só restava o céu.
os deuses deram como prenda duas asas à genial ave,
e do brilho da plumagem e do voo nasce a sua alegria,
embora apenas as aves sejam companheiras das nuvens.
o imenso espaço azul, os fortes ventos e as aves coloridas
são todos da mesma raça. mas nós não: o nosso único
génio é o de criar deuses que gostaríamos de poder imitar.

()






de val van icarus
óleo sobre tela, atribuído com reserva a
pieter bruegel





{ excerto do final do livro :: morte de dédalo }




()

dédalo:
vejo que chegas com um macio manto azul
nas mãos, para me envolver no teu abraço.
parece-me que será nas margens deste rio
que farás o suave leito onde irei descansar.
e sinto que esta beleza e esta paz são ofertas tuas.

coro:
abram a porta. deixem-no entrar
assim que as memórias o abandonarem.

dédalo:
recordo ainda o fio que entreguei a ariadne,
vejo aquele homem infeliz com cabeça de touro
e as asas do meu filho a caírem sobre o mar.
relembro o incessante mar que em cada manhã
voltava a sulcar a areia das praias de creta,
mas já não me é possível, adorada náucrate,
antever a luz do teu rosto sobre o meu.

coro:
assim que das recordações se esqueça.

dédalo:
tenho em mim a memória das tuas mãos, meu filho,
tão pequenas e fechadas nas minhas quando nasceste.
ainda hoje sei de cor as tuas mãos, meu filho,
tão trémulas e resignadas quando não lhes pude valer.

coro:
assim que das recordações se esqueça.

dédalo:
não queria morrer na beleza desta tua terra,
e sim poder viver para sempre no teu peito.
queria apenas pensar na água em que te banhasses,
no fruto que abrisses e na flor que colhesses,
na túnica que vestisses e na canção que cantasses
mas o meu coração, se assim pudesse pensar, pararia.

coro:
assim que das recordações se esqueça.

dédalo:
pois neste palco de formas infinitas que é o mundo,
desempenhei o meu papel sem dele saber ser actor.

coro:
abram a porta, deixem-no entrar.

dédalo:
porta que sempre para mim estiveste aberta,
mesmo quando os olhos do céu pareciam fechados,
sei que o teu apelo solene nunca se silencia.
da semente à flor, da flor ao fruto e de novo
 do fruto à semente, por ti passa o caminho.
só quem não sabe o que há no teu interior
tem medo de te abrir e receia afinal entrar.

coro:
as coisas aconteceram assim no mundo:
nem dédalo nem os deuses podiam saber
que no fim do labirinto estava outro labirinto,
este invencível, que é o do tempo que jamais cessa,
pois num lugar já fixado o hades a todos espera.
o industrioso fio de ariadne perdeu-se no tempo
e nesse labirinto até o labirinto se perdeu também,
mas é nosso dever imaginar que há um labirinto e um fio
mesmo que jamais, nem em sonhos, encontremos algum.

(a luz da manhã desponta no horizonte. o corpo de dédalo jaz imóvel na cadeira.
e o seu espírito, enquanto vai caindo o pano, lentamente sai de cena.)





20 dezembro 2016







tínhamos os olhos muito abertos.
queimávamos madrugadas de fio a pavio
e as aves desmanteladas que te dava para consertares
conheciam sempre finais felizes.

foram noites gigantes
a olhar pelo buraco da agulha
e a imaginar que do outro lado chegavam as mãos
e as bocas e os peitos.

ocupámos a casa inteira
e suturámos lentamente o coração.

agora estou dentro do sono.
um barco encalhado assinala esta tragédia
e já não sei como convocar os ventos e as marés.
as noites passam lentas e perseguem-me
como animais ainda por nomear.





Leonor Castro Nunes






17 dezembro 2016





há quem não entenda que até um profissional pode por vezes não resistir à emoção. aconteceu recentemente com a patti smith, que se enganou a cantar dylan na cerimónia de entrega dos prémios nobel. um desses momentos, dos mais tocantes, para mim é este, em que dweezil recria um dos grandes temas instrumentais do seu pai, frank zappa. ao longo da execução vamos percebendo que ele fica cada vez mais emocionado e por volta do 6º minuto, certamente recordando o pai, não consegue esconder as lágrimas. mas não pára, nunca deixa de tocar, e leva o tema até ao fim. e não conheço ninguém que também não se emocione com isto.





[ e, para quem gosta do exercício das sete diferenças, é descobri-las aqui ]




14 dezembro 2016





Desilusão


Quando me ofereceram O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, procurei imediatamente na letra B o verbete sobre o autor.



Afonso Cruz






07 dezembro 2016




estamos a menos de um mês do fim do ano, e penso que já o posso afirmar:
para mim, o melhor disco de dois mil e dezasseis foi o de miss olsen.









04 dezembro 2016









" lunchtime atop a skyscraper "

(construção do edifício rca, new york, 1932)

fotógrafo desconhecido








"It’s the most perilous yet playful lunch break ever captured: 11 men casually eating, chatting and sneaking a smoke as if they weren’t 840 feet above Manhattan with nothing but a thin beam keeping them aloft, with Central Park behind – and low. That comfort is real; the men are among the construction workers who helped build Rockefeller Center. But the picture, taken on the 69th floor of the flagship RCA Building (now the GE Building), was staged as part of a promotional campaign for the massive skyscraper complex. While the photographer and the identities of most of the subjects remain a mystery—the photographers Charles C. Ebbets, Thomas Kelley and William Leftwich were all present that day, and it’s not known which one took it—there isn’t an ironworker in New York City who doesn’t see the picture as a badge of their bold tribe. In that way they are not alone. By thumbing its nose at both danger and the Depression, Lunch Atop a Skyscraper came to symbolize American resilience and ambition at a time when both were desperately needed. It has since become an iconic emblem of the city in which it was taken, affirming the romantic belief that New York is a place unafraid to tackle projects that would cow less brazen cities. And like all symbols in a city built on hustle, Lunch Atop a Skyscraper has spawned its own economy. It is the Corbis photo agency’s most reproduced image. And good luck walking through Times Square without someone hawking it on a mug, magnet or T-shirt."




03 dezembro 2016





e talvez a primeira morada (e)s(t)eja sempre na casa oposta
como bem me recorda este meu americano tranquilo.







The ceiling is on the floor Floor in the refrigerator

What of the door? It's there no more
When it rains inside There is nowhere to hide

Which is why I'm all sunshine

 Ain't nobody want you 
Ain't nobody want me too
 If hell is above you You're even lower than I do
Oh why Why does it rain inside?

Mine is in a busted house Rain inside when it's sunny out
Outside in/ Inside out One step forward two steps back
They say opposites attract 

But they haven't tracked In my heart shack

The opposite of white Isn't white but rainbow blood
 
This house is too narrow And made from endangered wood
Oh why Why does it rain inside?

How do you make a magnet? You create a potential
Just an old refrigerator magnet Repelled and pulled
Ooohhhh why so needy? Tell me why

Living in a golden age Why do these words sound so strange?
Nothings changed Inside this cage From the window I can see
You coming back to me How can this be? My windows a dream

Pet snakes in the hall Pet snakes wall to wall
Coiling where the mice crawl Winter, spring, summer and fall
Oh why Why does it rain inside?





01 dezembro 2016







primeira morada




talvez seja sempre difícil o azul
quando atrás das casas não se fala de árvores
nem de peixes
quando o corpo não consegue a liquidez dos aquários
a luz a trespassar pequenos seixos e guelras
talvez seja difícil respirar pelo beijo
quando não há mar onde afogar os cabelos
eu queria esse segredo de barcos de papel abandonados à corrente
fechar os olhos e trazer-te à língua dos lençóis
uma cama virada a sul onde as aves assobiassem de madrugada
e a pele soubesse a mel e figos
onde toda a geometria fosse a lentidão das mãos
sobre porcelana ou vidro
e nada quebrasse a moldura dos dias





Ana Caeiro