26 junho 2014





Descrição da cidade de Lisboa





A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol, menina a comer
cachorro quente, menina a dançar na rua, rapariga do dedo
no olho, do dedo na árvore. Rapariga de braços levantados,
rapariga de pés baixos, rapariga a roer as unhas, rapariga a ler
jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay, rapariga no
vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga aflita, rapa-
riga solta, rapariga abraçada, rapariga precisada. Rapariga
a fumar charuto, rapariga a ler Forster, rapariga encostada
na palmeira, rapariga a tocar piano. Rapariga sentada em
Mercúrio ao lado de um leão, rapariga a ouvir discurso de
Ghandi, rapariguinha do shopping. Rapariga feita de átomos
e sombra. Rapariga de um ponto ao outro e medindo qua-
renta e dois centímetros, rapariga impávida, rapariga serena.
Rapariga apaixonada por igreja quinhentista, rapariga na
moto a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga que ofe-
rece à visão o hábito da escuridão e depois logo se vê. Rapa-
riga de ossos partidos, rapariga de óculos negros, rapariga
de camisola em poliéster, rapariga debruçada na cadeira da
frente no cinema, rapariga a querer ser Antonioni. Rapa-
riga estável, rapariga de mentira, rapariga a tomar café em
copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga na proa da
nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga de pó na
cara, rapariga abstémia, rapariga evolucionista. Rapariga de
rosto cortado pela faca de Alfama, rapariga a fugir de com-
promissos, rapariga a mandar o talhante à merda, rapariga a
assobiar, rapariga meio louca. Rapariga a deslizar manteiga
no pão, rapariga a coçar um cotovelo, rapariga de cabelo
azul. Rapariga a brincar com um isqueiro no bolso, rapa-
riga a brincar com um revólver nas calças, rapariga a nadar,
rapariga molhada, rapariga a pedir uma chance só mais uma
ao santo da cidade. Rapariga a ostentar decote no inverno,
rapariga a olhar pelo canto do olho esquerdo, rapariga a ser
homem, rapariga na cama. Rapariga a subir o volume, rapa-
riga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no chão. A rapariga
a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia de seda
amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado numa
esquina.







Matilde Campilho







4 comentários:

  1. Lisboa é uma rapariga assim, feita de muitas raparigas que às vezes parecem estranhas umas às outras, e outras vezes se aproximam... E lá está a rapariga impávida / a rapariga serena.
    Gostei muito de ler! Não conhecia este poema da Matilde.

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    1. tinha piada uma descrição de lisboa com "um rapaz a pensar naquilo,..."

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  2. Tem graça descrever Lisboa assim...falta-me comprar o livro!

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